"Le Jazz c'est moi"

Ao contrário dos "Cinco Minutos de Jazz" radiofónicos, que lhe deram nome, o novo livro de José Duarte não vai pesar na história do Jazz em Portugal.

Quando se escrever a história do Jazz em Portugal, José Duarte (JD) será um nome decisivo no capítulo da divulgação & crítica. Porque, depois de Luís Villas-Boas e a seguir a Raúl Calado, foi o mais persistente e activo membro de uma geração pioneira (Manuel Jorge Veloso, Raúl Vaz Bernardo) que fez uma revelação militante, apaixonada e continuada do Jazz.O programa "5 Minutos de Jazz" é um eixo central do longo currículo de JD que, ao tomar-lhe o nome para o seu novo livro, pretendeu homenageá-lo mais à sua rara longevidade. A vida dos "5 Minutos" na Rádio Renascença, onde nasceram em 1966, acabou em 1975 com uma bomba definitiva de um governo provisório que destruiu os emissores. A ressurreição só aconteceu em 1984, na Rádio Comercial, e continuou na RDP-Antena 1, onde o programa mora desde 1993. As suas duas vidas somam, pois, 25 anos, e não os 34 já festejados em 2000. Mas isto não é muito importante, é apenas verdade.Aliás, custa a perceber a razão da sua repetida celebração como "o programa diário mais antigo da rádio portuguesa". Durante anos, o "TV Rural" terá sido o programa mais antigo da televisão portuguesa e isso foi coisa que nunca me comoveu. Mas esta pública obsessão tornou-se uma feição de JD: tudo o que faz tem de ser "o mais" ou "o primeiro" de qualquer coisa - uma ambição assombrada pelo pioneirismo de Luís Villas-Boas (na rádio, nos jornais, nos clubes, nos concertos e festivais), um autêntico Adamastor pessoal que a história lhe colocou no caminho e que JD nunca poderá corrigir.Tal como os seus dois livros anteriores, "Cinco Minutos de Jazz" recolhe textos já publicados na imprensa. "João na Terra do Jaze" (editado em 1981) não pode ser ignorado: a história local do Jazz terá de passar por ele. Em "Jazzé e Outras Músicas" (1994), JD fala quase sempre do Jazz sem falar dele ou falando ao lado dele; como impressão digital que marcou o seu modo de ver as coisas dos homens e do mundo, o Jazz é mais um instrumento do que uma identidade. Em "Cinco Minutos", mesmo quando sujeito da oração, o Jazz passou de texto a pretexto: se ontem falava do Jazz falando de si, agora JD fala do Jazz para falar de si. Aqui, JD podia escolher nome de "standard": "Me, myself and I".JD é homem de talentos: inteligente e criativo, com humor apurado, profissional, bom comunicador. E nunca entregou o ouvido musical só ao Jazz. Mas, hoje, escreve e publica para si próprio, mesmo quando escreve sobre outros. Textos como "Expression" (pág. 67), sobre Coltrane, tornaram-se raros. O que pesa são exercícios como "Ersatz e Gestalt", "Os Esgares de Margarida", "Pertinências", "O Céu" e "Sob". O resultado é a contaminação acelerada da escrita por fantasmas pessoais.Aquilo que no marxismo se chama "má consciência de classe" ataca JD sob a forma de "má consciência cultural". Os depoimentos recolhidos relevam da "má consciência" de quem, no fundo, não consegue fugir à necessidade de "legitimar" e "dignificar" o Jazz (e quem sobre ele escreve) com a aprovação de opiniões de personalidades com nome noutras áreas culturais. Quando Bernstein sublinha a importância do Jazz não está a tornar o Jazz "melhor" ou "maior". É ele, Bernstein, que se está a tornar "melhor" e "maior". A Música Clássica não ficou "melhor" ou "pior" quando Parker confessou a sua admiração por Stravinsky. Bird é que ficou "melhor". Bechet não vale mais porque Ernest Ansermet o elogiou. Ansermet é que se tornou "maior" ao reconhecer a valia do Jazz e de Bechet. O mesmo se passa com JD quando elogia Bomtempo ou Vasarely.Mas JD não acredita. Pensa que a sua herança jazzística vale mais tendo atrás dezasseis anódinas palavras de Maria João Pires ("O Jazz é uma das formas musicais mais sublimemente envolventes que me foi dada a conhecer"), um texto simpático de Olga Roriz, um devaneio afectivo de Ana Bustorff ou um exercício "snob" de Pedro Cabrita Reis. E por isso todos os depoimentos publicita como "homenagens" aos seus "5 Minutos de Jazz", assim sucumbindo à crença de que o "argumento da autoridade" importa mais do que a "autoridade do argumento". Eloquente é, ainda, o uso dado ao depoimento de Jorge Sampaio, que evoca, de forma calorosa, uma relação de amizade já antiga. Mas o amigo Jorge Sampaio pesa menos do que o Presidente Jorge Sampaio - o valor do seu testemunho decorre do cargo que ocupa. Di-lo o modo como o seu texto, que abre o livro e lhe serviu de promoção, é apresentado: "Depoimento de Sua Excelência o Presidente da República". Assim mesmo: expurgado da identidade, cem por cento institucional.Há neste livro coisas que não se previam. E faltam outras que seria natural encontrar.De quem protesta contra a presença de Maria João e Mário Laginha num festival de Jazz ("Estou no meu direito, João e Laginha em sexteto, voto contra. É um grupo de world music..." in "Visão"", 26-10-2000), estranha-se que em livro intitulado "Cinco Minutos de Jazz"acumule textos sobre Caetano e Gilberto Gil, Nanci Griffith, Carlos Paredes, Zap Mama, Rancho Folclórico do Porto.Quem hoje o ouve e lê (na rádio, na internet, nas conferências) sabe que uma das bandeiras de JD é aquilo a que chama a defesa dos músicos portugueses. Mas no seu livro não cabe um único texto sobre (ou entrevista com) qualquer músico português. Singular é, também, o reflexo dos festivais e concertos na sua escrita. JD generaliza antes, evita concretizar depois. Alguns festivais, não todos, merecem-lhe frases de antecipação, raramente opiniões posteriores. Recados sim, muitos. Conforme as conveniências, absolve e condena (dos e pelos mesmos "crimes") os mesmos "réus" (que são sempre os suspeitos do costume). Como Luís XIV: "Le Jazz c'est moi."Restam ecos do "antigo" JD: do humor ("Festivais de Jazz: o Ano da Abundância") à imaginação aliada à informação útil, logo pedagógica ("Nova Orleães, Muita Música, Pouca Vergonha", "Mahalia Jackson", "Para Sinatra"). Mas o tom geral é o de auto-retrato ao espelho (que, aliás, é o tema da página 114), de par com uma enorme indiferença ou desrespeito pelo leitor (partilhado pelo editor - a mancha gráfica é agradável e de leitura fácil, mas a revisão é péssima, com inúmeras gralhas e um índice remissivo quase inútil, tantos são, bem acima da centena, os erros ortográficos e as omissões de nomes e entradas por página). Como o rasgado elogio (em "Andy Kirk") a disco nunca identificado (mas que se informa ter sido tocado noutro programa de rádio de JD). Ou os zig-zags de uma escrita que, para ser "diferente", cultiva a provocação da originalidade gratuita, mesmo que à custa de sucessivas contradições. Como no "caso" Miles Davis.Na sua morte, em 1991, JD chama-lhe "a coluna vertebral do Jazz moderno" e "o último artista que lhe mexeu na forma". Em 1993, Miles já não passa de "um trompetista sedutor", cujos "sucessos vêm muito e muito dos seus sidemen" (coisa rara no Jazz!). E acaba fulminado: "Que fez Miles de definitivo, de revolucionário comparável com Armstrong, com Bix, com Dizzy, com Clifford, com Navarro, até mesmo com Bowie?" Mas, em 1998, o mesmo Miles já é citado como "Génio" (com maiúscula) ao lado de Lester Young. Ou será esta a aplicação prática de nova divisa de JD, "sou dessa opinião e simultâneamente da contrária" (pág. 175), uma espécie de versão erudita de "o que hoje é verdade amanhã já não é", popularizado por um patrão do futebol?Sem Villas-Boas, o Jazz em Portugal não estaria onde está; mas só com Villas-Boas também não. Nomes há sem os quais a nossa história do Jazz estaria muito mais atrás e mais pequena. Desses, o de JD é dos que mais pesa. Mesmo que só um "espelho meu" o possa levar a dizer que os "mega festivais" de Cascais e os "5 Minutos de Jazz" foram "os pólos fundamentais na divulgação do Jazz", deixando de fora o "TV Jazz" de Manuel Jorge Veloso, por onde passaram, nos anos 60, concertos dos maiores jazzmen, que só depois tocariam em Cascais.Estes "Cinco Minutos de Jazz" não diminuem o passado de JD. Mas não lhe engrandecem o presente nem lhe auguram um bom futuro. Felizmente para ele, a História esquece o supérfluo e guarda o essencial.

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