Os herdeiros de Khomeini

O Irão celebra hoje o décimo aniversário da morte de Khomeini, com parte do país a olhar com nostalgia para o passado, e outra parte a olhar com esperança para o futuro. Reformadores e conservadores preparam já o terreno para a grande batalha das legislativas do ano 2000.

O ayatollah Ruhollah Khomeini, o homem que fez a Revolução Islâmica no Irão, morreu há dez anos, na noite de 3 para 4 de Junho de 1989, e nasceu há cem anos - uma coincidência histórica que levou o seu sucessor, o ayatollah Ali Khamenei, a declarar 1999 como "o ano do imã Khomeini".Da revolução feita há 20 anos por Khomeini (mais um aniversário, este festejado há poucos meses), os lenços que continuam hoje a cobrir a cabeça de todas as mulheres no Irão são um dos poucos símbolos que ainda resiste, inabalável, às mudanças. De resto, o país vive um tremor de terra, imperceptível durante a maior parte do tempo, mas que poderá marcar o futuro do Islão - tal como a Revolução Islâmica o marcou há duas décadas.A memória de Khomeini continua intocável. Mas o seu sucessor Khameini não reúne o mesmo consenso, e é actualmente um dos principais protagonistas de uma luta decisiva entre as alas conservadora e reformista do regime. Khamenei, o Guia Supremo, é a figura de referência máxima dos conservadores. No outro extremo está um curioso "líder da oposição", o Presidente reformador Mohamad Khatami. A guerra entre as duas facções é permanente, os campos de batalha é que vão mudando: um dia pode ser um presidente da Câmara considerado demasiado liberal e afastado pelos conservadores (aliás, já substituído por outro reformador - ver caixa); noutro dia podem ser as eleições municipais; noutro ainda pode ser a ordem de suspensão de um jornal liberal ou mesmo a detenção do director da agência noticiosa, outra figura próxima do Presidente Khatami.Os conservadores, que controlam as principais instituições do país, do Parlamento ao poder judicial, têm ganho algumas pequenas batalhas, mas as maiores têm sido vencidas pelos reformadores. Foi o que aconteceu nas recentes eleições municipais, em que os candidatos pró-Khatami foram eleitos em grande número, em grande parte graças aos votos dos jovens, que constituem a maioria da população do país e a principal força de apoio do Presidente. No entanto, todos estes episódios são apenas ensaios para a grande batalha que se avizinha: as legislativas do ano 2000. Se os reformadores conseguirem conquistar a maioria no Parlamento haverá uma verdadeira alteração dos equilíbrios de forças. No fundo, o que está em jogo é a relação entre a religião e a política e o princípio da "velayat-e faqi" - o fundamento básico do regime iraniano, que determina a supremacia do religioso e atribui à autoridade máxima do Guia Supremo, que pode, nomeadamente, contrariar as decisões do Presidente. O que vários teólogos reformadores começam a defender é que o Guia não têm um carácter divino, e por isso deveria ser eleito democraticamente, para um mandato limitado e com uma função essencialmente espiritual e não política. Mas não é tarefa fácil defender a criação de instituições laicas quando o termo "laico" nem sequer existe na língua persa. É por isso que muitos desses teólogos estão em situações delicadas, com residência vigiada ou impedidos de trabalhar.Na sociedade, as mudanças vêem-se em grandes e pequenos sinais: desde o sucesso que os filmes americanos têm no mercado negro do video, até pormenores como o facto de os bebés serem cada vez mais baptizados com nomes persas pré-islâmicos em vez dos nomes árabes, num claro afastamento da cultura árabo-islâmica por parte da nova geração. Por enquanto esta "coabitação à iraniana" tem funcionado com relativa estabilidade. Trata-se, segundo o analista Eric Rouleau, de um "desequilíbrio estrutural" que opõe o poder absoluto de Khamenei à legitimidade popular de Khatami. Sendo que o poder absoluto de Khamenei é uma pálida sombra do que foi o poder absoluto de Khomeini.Hoje, como todos os anos, milhares de iranianos vindos de todo o país vão participar numa cerimónia oficial no mausoléu do imã Khomeini, a Sul de Teerão. Quanto ao "outro" país, os outros milhares de iranianos, vão ficar nas suas casas, longe das cerimónias oficiais, longe do espírito revolucionário que partilharam em 1979. Mas perto de outra revolução - a deles próprios, a de hoje, e já não a do velho ayatollah, há 20 anos.

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