O "Carniceiro dos Balcãs" pediu morangos até ir para Haia

Foto
O antes e depois de Mladic, que é hoje um homem de aspecto frágil POLITIKA NEWSPAPER/afp

General Ratko Mladic foi dado como "apto" a enfrentar julgamento no Tribunal Penal Internacional para

a Ex-Jugoslávia, apesar de doente

O soldado largo como uma barrica, de cara grande e vermelha, excessiva, olhos azuis como facas, cujo aspecto era tão assustador como as suas ordens durante a guerra da Jugoslávia, tem hoje um aspecto frágil. Na única foto que dele se conhece, os olhos azuis muito abertos sobressaem nas maçãs do rosto salientes, num rosto magro, encovado, pálido pela falta de sol, o vermelho da pele agora a sugerir doença. Mas os médicos sérvios que o observaram consideraram que Ratko Mladic, o comandante militar dos sérvios bósnios, está apto para ser julgado por crimes contra a humanidade, de guerra e genocídio.

Já não tem o aspecto imperioso do "Carniceiro dos Balcãs", como foi apelidado, pelo seu papel no massacre de Srebrenica e no cerco a Sarajevo, e outros actos da guerra que não ficaram tão presentes na memória histórica como sinónimos do regresso de uma violência atroz à Europa. Não parece um homem que comandou uma guerra que fez 100 mil mortes, e sim um reformado rural, correspondendo à sua identidade dos últimos anos: vivia na aldeia de Lazarevo, em casa de um primo, sob o nome falso de Milorad Komadic, aparentemente sem meios de subsistência.

Mas o tribunal considerou ontem ter ficado "estabelecido que o general Ratko Mladic está fisicamente apto a seguir as audiências e ele recusou-se a receber o acto de acusação do Tribunal Penal Internacional para a Ex-Jugoslávia (TPI-J)". A juíza Maja Kovacevic veio dizer que "estão reunidas as condições para a sua extradição" para Haia, apesar de ter "várias doenças crónicas".

A família indignou-se. "Ele está em muito má forma. O braço direito está meio paralisado e praticamente não tem reacção em todo o lado direito do corpo", disse o filho, Darko Mladic, depois de visitar o pai, dizendo que ele "não é culpado". A família, aliás, pediu uma avaliação independente por médicos russos, que possivelmente servirá de base para um recurso contra a decisão de extraditar o general, que agora tem 69 anos.

Moscovo tem apelado a que Mladic tenha um julgamento justo e a que o seu caso não seja usado para justificar o prolongamento do mandato do TPI-J (que é uma instituição provisória, criada em 1993, e com data de terminação marcada para 2014, embora isso possa ser revisto).

Visita à campa de Ana

Mladic tem até segunda-feira para pedir recurso da extradição e o seu advogado garantiu que o fará. "Será logo segunda-feira de manhã", disse Milos Saljic. O seu cliente "recusou-se a dizer fosse o que fosse para se defender das acusações do TPI-J", na audição de extradição, explicou.

E, entretanto, Mladic pediu para visitar a campa da filha, Ana, que se suicidou em Belgrado, em 1994, alegadamente por não suportar o que ouvia dizer sobre o pai. Pediu também um televisor e livros para ler, de autores clássicos russos, diz a AFP: Tourgueniev, Tolstoi e Gogol. Um último luxo, para a boca: morangos.

Mas enquanto o processo de Mladic aguarda o seu curso, o Governo fez saber que as coisas não vão ficar por aqui. "O Estado fará um inquérito muito aprofundado para saber onde é que ele esteve, com quem esteve e se houve cumplicidades no seio do aparelho do Estado", durante os 11 anos em que viveu na clandestinidade, declarou o vice-primeiro-ministro sérvio, Bozidar Djelic.

Consideram-se 11 anos porque, até 2000, até o Presidente sérvio Slobodan Milosevic ter sido afastado do poder, Mladic desafiou abertamente a justiça internacional: era presença habitual nos bares e restaurantes de Belgrado, e não hesitava em mostrar-se nas pistas de esqui e a cuidar das rosas no seu jardim. Só a partir de 2000 entrou na clandestinidade.

Motivação política

Há interrogações sobre por que é que só agora Mladic terá sido preso - quando viveria na aldeia de Lazarevo, e ainda por cima com familiares, já há bastantes anos, e a casa nunca ter sequer sido revistada.

"Não creio que isto tenha simplesmente caído do céu", disse um diplomata da região à agência Reuters. "Foi motivado por preocupações de política nacional e pela compreensão de que o Partido Democrata Sérvio [do Presidente Boris Tadic] precisa de ter muitas palmadinhas nas costas e até abraços da União Europeia (UE) para ter hipóteses de ganhar as próximas eleições."

As legislativas são no início de 2012, e as presidenciais em 2013, e as mais recentes sondagens mostram o partido de Tadic, pró-ocidental, bem atrás dos nacionalistas de Tomislav Nikolic. A oposição nacionalista, entretanto, também já se rendeu ao objectivo da entrada da Sérvia na União Europeia, diz a Reuters.

Há duas semanas, o procurador doTPI-J, Serge Brammertz, avisou Belgrado de que não estava a fazer o suficiente para encontrar Mladic. Prender o general da guerra da Bósnia era uma condição fundamental para a candidatura da Sérvia à UE poder ser aceite e o relatório de Brammertz seria tornado público, nas Nações Unidas, em Junho. "Provavelmente, tornaria impossível o progresso da candidatura sérvia", comentou o mesmo diplomata à Reuters.

Esta conjugação de factores pode ter impelido o Governo sérvio a agir e a prender Ratko Mladic, o fantasma sangrento do seu passado que continuava a assombrar o seu futuro.

Sugerir correcção