"El Gordo" e o coelho, ou a magia e os equívocos de uma tradição espanhola

a Para efeitos dos hábitos espanhóis, o Natal começa hoje. É dia de sorteio do "El Gordo", a lotaria mais compensadora do mundo, que há anos, em crónica de espanto, o New York Times popularizou nos Estados Unidos como "the fat one". À margem do sorteio, um animal entrou na história natalícia de 2007: o coelho. Este ano, a previsão é de que os espanhóis invistam três mil milhões de euros em décimos. Primeira magia da quadra: o gasto é encarado como investimento, dependendo a mais-valia do número cantado pelas vozes de falsete dos 36 adolescentes do coro misto do Colégio San Ildefonso. Nos jogos de azar estão sempre presentes crianças. Porque, dizem, são inocentes. Mas há quem não se fie. Desde a madrugada longas bichas rodeiam os salões da administração da lotaria na Rua Guzman el Bueno, conquistador de Tarifa e herói da guerra contra os muçulmanos. Não querem, apenas, assistir ao espectáculo em directo. Mas confirmar que, nas tômbolas, estão todos os números. Especialmente o seu. Claro.
Segunda magia festiva: a participação. Depois do El Corte Inglés, a lotaria do Natal é um dos poucos fenómenos de comunhão na sociedade espanhola. Os grandes armazéns estão em todas as cidades, regiões e comunidades. Com ou sem língua própria. O negócio fez-se símbolo. Os décimos também se vendem em todo o lado. E, aquando do sorteio, todas as televisões, todas as rádios transmitem a função.
Terceira magia das festas: uma manhã de consenso. Basta circular pelas ruas madrilenas. Trânsito infernal. Bulício nos armazéns. E lojas de comes e bebes a abarrotar. Próprio de uma época de excessos. O gasto médio dos espanhóis nestas festas é de 951 euros. Já se sabe que a estatística suaviza diferenças. Equilibra rendimentos. Disfarça problemas. Mas, mesmo assim, 951 euros estão acima dos 663 que é a média europeia de gasto.
Quarta magia: a abundância. Mas há classes. As angulas (crias de enguias) estão a 1200 euros o quilo. O besugo fresco subiu 30 por cento. Por isso, 40 por cento do orçamento vai para a alimentação. Igual fatia para prendas, com a roupa a ser o presente mais em voga. Depois, segue-se a lotaria, almoços e jantares...
Quinta magia da estação: gerir o orçamento. A multiplicação orçamental surpreende todos. Já se falou de dinheiro sujo. De expedientes inconfessáveis. Mesmo de acumulação indevida. Pedro Solbes, o ministro da Economia que apela à ponderação do gasto, não é ouvido. Nem a inflação de 4,1 trava o consumo. A sociedade espanhola tem dúvidas sobre o futuro. Mas não olha a gastos.
Sexta magia da época: o optimismo. Uma época tão mágica recomendaria prudência aos governantes. Mas assim não acontece. Confrontado com críticas ao preço do cabaz das compras, um funcionário metido a político, ou um político pouco funcional, deu conselhos. O secretário-geral da Agricultura e Alimentação, Josep Puxeu, recomendou o coelho. "Uma carne sã, leve, apetecível e barata", disse. Tornou-se o homem mais tristemente popular do país.
Primeira evidência: o espanhol não gosta de conselhos. Faz o contrário do recomendado. Segundo erro: o Natal não é tempo de paternalismos. Terceira incongruência: o roedor da preferência do governante não serve para recheio. Quarta falha: o coelho não se pode rechear. Quinta conclusão: não é animal natalício. Sexto equívoco: falou um secretário e não um cozinheiro. Conselho dado a Pixeu pelos espanhóis: coma-o você e tenha Bom Natal. Se puder.

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