A Guiné-Bissau precisa de "um Governo de transição inclusivo"

Murade Murargy O novo secretário executivo da CPLP tem como prioridade a segurança alimentar e o sonho de lançar uma televisão de língua portuguesa. A Guiné-Bissau é o dossier mais quente e a CPLP integra uma missão que chega hoje ao país

É a primeira vez que acontece: representantes da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) devem chegar hoje a Bissau, integrados numa missão de organizações internacionais que vai avaliar a situação no país, oito meses após o golpe de Estado que derrubou o Governo eleito de Gomes Júnior. A organização lusófona não reconhece o poder instaurado pelos militares, mas considera necessário defender os "interesses dos guineenses", afirma o novo secretário executivo, o moçambicano Murade Murargy. Foi por isso que, mandatado pelo Conselho de Ministros da CPLP, Murargy, de 66 anos, antigo embaixador em Paris e Brasília, negociou a presença lusófona na missão que também integra representantes da CEDEAO, Nações Unidas, União Europeia e União Africana.

A Guiné-Bissau é um dos assuntos que mais têm ocupado a CPLP. Tem havido contactos com o chamado Governo de transição?

A posição da CPLP é a da África, é a do mundo: não reconhece governos que saem de golpes de Estado, porque, se os reconhecermos, abriremos uma caixa de Pandora. É preciso que a legalidade e a ordem sejam repostas. E aí podemos conversar...

Não tem havido contactos, nem informalmente?

Ainda não. Nós promovemos o diálogo. Em Nova Iorque [por ocasião da Assembleia Geral das Nações Unidas, no fim de Setembro], fui uma das pessoas a procurarem promover o diálogo entre os dois lados. Estavam lá o Governo legítimo, que nós reconhecemos, e o Governo ilegítimo, que saiu do golpe, que foi imposto, empossado pelo exterior. O que a CPLP quer é defender os interesses dos guineenses, não queremos interferir no processo, queremos é que se entendam, criando plataformas que conduzam à estabilidade.

Mas ainda não tiveram contactos directos?

Nós ainda não.

E com a CEDEAO?

Com a CEDEAO sim. Em Nova Iorque, tivemos uma reunião do Conselho de Ministros da CPLP, analisámos a situação e fui mandatado para me encontrar com o meu homólogo da CEDEAO. Tivemos um encontro, a situação foi-me descrita como estável. Tudo era normal, tudo funcionava, tudo estava bem. E disseram-me que podíamos ir lá verificar e organizariam uma missão in loco. E avancei com a ideia de uma missão conjunta. Tivemos uma reunião na União Africana e decidiu-se uma missão conjunta à Guiné-Bissau.

As duas partes estavam lá, também se encontraram paralelamente à porta fechada, discutiram e foi decidida uma segunda reunião em Addis Abeba, [para que] as duas delegações, da CEDEAO e da CPLP, sob liderança das Nações Unidas e da União Africana, definissem os termos de referência dessa missão, o que é que ia fazer, a composição e as datas. Em Addis Abeba, esteve só o Governo legítimo, nós, a CEDEAO, as Nações Unidas e a União Africana. O Governo que está lá [na Guiné-Bissau] não apareceu. Saiu de Bissau, foi até Dacar e depois voltou para trás. O nosso objectivo era ter os termos de referência aprovados, a missão e a data definidas: foi o que fizemos. É agora, de 16 [hoje] a 21.

Irá uma delegação da CPLP, outra da CEDEAO...

E das Nações Unidas, União Africana, União Europeia, são os cinco parceiros.

Vai avaliar a situação?

Vai encontrar-se com o Governo de transição, embaixadores, partidos políticos, militares, actores listados nos termos de referência, para avaliar a situação de segurança e definir um calendário para restituir a Guiné-Bissau à estabilidade. Não vai ser fácil.

O que espera desta missão?

As informações que tenho recebido é que há um certo optimismo, [há esperança de] que a missão vai, pelo menos, trazer uma certa luz a esta situação, sobretudo ver se é possível realizar eleições no próximo ano. A parte legítima insiste na questão da segurança, porque se não há garantia de segurança para que todos, independentemente das cores políticas, possam participar no processo, então não haverá clima para isso.

Está a falar de eleições...

Eleições e não só. É preciso constituir um Governo de transição inclusivo, que não seja este, que haja uma definição clara do roteiro, que as forças de segurança não sejam só da CEDEAO. São aspectos que queremos ver respeitados. A nossa presença na Guiné-Bissau não significa, temos deixado isso bem claro, que reconhecemos aquele Governo. É um princípio que deixámos claro nos termos de referência.

Com esse "caderno de encargos", acha possível que as eleições sejam em Abril, como disse o Governo saído do golpe?

Vai ser muito difícil. Poderão ter lugar no próximo ano, mas em Abril vai ser difícil, porque há uma série de condicionalismos. Há a questão da segurança, é preciso mobilizar recursos e que os partidos estejam preparados para isso. Só depois da avaliação é que podemos definir se é possível fazer eleições em Abril.

Conhece o relatório do secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, que dá conta da intensificação do tráfico de droga e da violência contra opositores. Isso coincide com as suas informações?

Estamos ao corrente. Realmente, há esse clima. Se as próprias Nações Unidas são ameaçadas, se o próprio representante foi ameaçado de sequestro, de morte, significa que não há um clima de segurança propício a que as eleições se possam realizar.

São previsíveis novas sanções, sanções eficazes?

As sanções estão a ser eficazes. Estão a ser aplicadas a proibição de circulação de dirigentes golpistas e o embargo às exportações. É verdade que [isso] está a prejudicar o povo guineense, mas o Governo está a começar a sentir. Na última reunião, na cimeira de Abuja, da CEDEAO, fizeram um apelo à União Africana para que apoiasse o levantamento de sanções. Mas, enquanto a situação prevalecente for a que é, não estão criadas condições para o levantamento.

E sanções adicionais?

Por enquanto, acho que não.

Outro dossier que tem ocupado a CPLP é o pedido de adesão da Guiné Equatorial. Há algum desenvolvimento?

Não. Há um grande interesse da parte deles. Consideram-se mais integrados na comunidade de países de língua portuguesa do que noutras comunidades da região a que pertencem, e têm interesse em desenvolver relações comerciais e empresariais com os nossos países.

Há um obstáculo de monta à adesão, a pena de morte.

A questão da pena de morte é um grande entrave. Mas há países que são democráticos e têm pena de morte. Os Estados Unidos têm pena de morte. A China tem pena de morte. E não se deixa de ter relações com esses países. É uma questão política que temos de analisar.

É diferente ter relações ou participar numa comunidade.

Sim. Queremos que quando um Estado entre para o nosso clube venha com uma folha limpa, no sentido de que vai observar os nossos princípios. É o que temos procurado. É por isso que não entrou, não é? Não estamos a colocar nenhum entrave, mas também não estamos a dizer [que] entra de qualquer maneira. Vai haver um grupo de acompanhamento para apoiar a Guiné Equatorial, aconselhando os passos que deve seguir para que possa ser membro efectivo. Estamos esperançados que, se tudo correr bem, possa entrar na próxima cimeira, em Díli. É uma hipótese.

Como olha para a situação em Moçambique, com o discurso recente da Renamo, o tom crítico e ameaçador à estabilidade?

Penso que os moçambicanos vão saber ultrapassar esta dificuldade, que o bom senso vai prevalecer.

Caso contrário, deitam abaixo tudo o que conquistaram, a estabilidade que Moçambique conseguiu desde que acabou a guerra, em 1992. Penso que conseguirão ultrapassar isso.

Está satisfeito com o protagonismo da CPLP? Como acha que deve evoluir?

A CPLP só tem 16 anos, é muito jovem. É um edifício inacabado, mas os alicerces são bastante sólidos. Começámos pela concertação político-diplomática, que é o alicerce principal da nossa organização. Um exemplo que posso dar é a eleição do director-geral da FAO. Num universo das Nações Unidas de quase 200, oito países conseguiram movimentar o mundo e eleger o director da FAO. Não é fácil lutar com uma Espanha que tinha um forte candidato.

O que é que isso significa? Que temos uma força enorme que tem por base a concertação política e diplomática. É verdade que há outros domínios em que ainda temos que avançar - a parte empresarial é ainda muito insignificante se for vista na perspectiva da CPLP, mas não se for vista na perspectiva bilateral. Se formos ver as relações bilaterais dos nossos países, o fluxo é enorme. Brasil-Moçambique, Brasil-Angola, Portugal-Brasil, o fluxo de investimentos é enorme.

Que frentes económicas da CPLP podem ser trabalhadas?

A grande frente definida na última cimeira da CPLP é a produção de alimentos, o agro-negócio. É uma área fundamental, porque vamos assistir a uma crise alimentar no mundo. Os nossos países podem jogar um grande papel, produzindo para o próprio mercado e para outros sem capacidade de o fazer. Hoje, um país que consegue suprir as suas necessidades primárias e exportar é um país rico.

Há também potencial para uma frente lusófona para a energia?

É um grande potencial, é uma arma. Angola, Moçambique e Brasil podem-se tornar um grande pólo de desenvolvimento energético. Não é só petróleo, carvão e hidroeléctricas, mas também bioenergia. Moçambique está neste momento a desenvolver uma grande capacidade de bioenergia.

Desta vez, os recursos energéticos vão ser motor de desenvolvimento ou uma nova maldição?

Um grande problema dos países africanos é o seu nível de desenvolvimento desigual. O factor humano conta muito e essa é uma das grandes fraquezas que temos. Precisamos muito de apostar na educação, na saúde. Se não tivermos a capacidade humana, não vamos conseguir desenvolver esses recursos. É um grande obstáculo. Moçambique tem uma taxa de 50%. É muito para uma população de 21/22 milhões de habitantes. Quem diz Moçambique, diz Angola, os países africanos, de forma geral. Na minha acção, vou insistir muito na necessidade de formação, educação, saúde. Isto sem esquecer Timor-Leste, que também tem recursos.

Como vê este interesse angolano pelos media portugueses, pela banca, e o efeito sobretudo de entrada de capital angolano na televisão?

Mas isso não é bom? Acho óptimo. O que é preciso é esta nossa integração. Os portugueses não investem em Angola? Por que não o contrário? E Angola está a crescer. Moçambique não tem capacidades como os angolanos, mas aos poucos investimos [o exemplo é o da restauração]. É salutar. Contribui para a criação de emprego e diversificação dos capitais.

Olhando especificamente para os media, é uma área com sensibilidade especial.

Acha que os angolanos querem amordaçar os media portugueses?

Também nos questionaríamos se houvesse investimento brasileiro no media públicos moçambicanos ou cabo-verdianos.

Angola tem investido muito na comunicação, quer ter muita visibilidade. Na Globo, em Moçambique, é só publicidade angolana. Só as novelas e o futebol não são angolanos. A CNN também tinha muitos anúncios angolanos. O país tem feito um grande trabalho de venda da sua imagem internacional.

O Brasil adiou o acordo ortográfico para 2016. É

um potencial caminho para a revisão do acordo?

Não, são questões muito técnicas. O país tem que se preparar para introduzir acordo nas escolas. Não há recuo nenhum.

Recorrentemente, fala-se da possibilidade de o Português ser língua oficial das Nações Unidas. Há passos concretos?

Estamos a trabalhar, mas implica muitos recursos financeiros, que não estão garantidos.

É uma intenção ainda longínqua?

Não, mas tem de ter um enquadramento financeiro. É uma língua de trabalho, mas para ser língua oficial ainda leva o seu tempo. Por exemplo, de cada vez que há uma assembleia geral da CPLP, temos que pagar a tradução feita para os presidentes e ministros que vão falar. Ainda não se conseguiu que a ONU absorvesse essa despesa. É um dossier que vou atacar em breve.

Qual gostaria que fosse, no final, a marca do seu mandato?

Se conseguisse instalar uma televisão de língua portuguesa, como a TV5 francesa, que expandisse a língua portuguesa por todo o mundo, seria uma grande alegria para mim. Pode ser real, é uma questão de os Estados-membros quererem fazer isso. Uma proposta mais real é a segurança alimentar e nutricional. Vai ser uma grande bandeira. É um tema que toca todos os países.

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