O preço do escândalo Lewinsky

Clinton elegeu o Tratado de Proibição Total dos Testes Nucleares como prioridade da sua política externa. Perdeu. Pela primeira vez desde a rejeição de Versailles, o Senado chumbou um tratado. Mais do que o documento em si, este é talvez o preço que os EUA, e o mundo, estão a pagar pelo escândalo Lewinsky.

Derrotado e obrigado a responder de novo a perguntas sobre Monica Lewinsky, o Presidente Bill Clinton recusou ontem a ideia de que, com a rejeição, no Senado, do Tratado de Proibição Total de Testes Nucleares (CTBT), os EUA perderam a "autoridade moral" no controlo nuclear. E a provar o seu argumento, fez um apelo ao mundo: "Não reajam com exagero e... fiquem do nosso lado."Partido em dois, o Senado chumbou o tratado na quarta-feira à noite com 51-48 votos, depois de ter agendado a votação uma semana antes e de ter recusado várias propostas democratas para adiar o voto até Clinton deixar a Casa Branca, em 2001.Da maioria republicana (55), só quatro senadores votaram a favor, o que fez faltar 19 votos para a necessária maioria de dois terços (67).Numa conferência de imprensa na Casa Branca, Clinton disse ontem que o voto contra a ratificação do tratado, considerado um reforço crucial do Tratado de Não Proliferação de 1970, foi um "sinal de um novo isolacionismo" americano e prova do "pior tipo de política partidária"."Vingança pessoal dos republicanos?", perguntou uma jornalista. "Não", respondeu Clinton. O voto "expôs apenas a fraqueza do argumento" da maioria.Os republicanos justificaram a recusa com três argumentos: o tratado é impossível de verificar; países como a China, a Rússia, o Irão e a Coreia do Norte vão "enganar" o mundo, e os EUA deixariam de ter o instrumento para garantir que os seus arsenais nucleares são "seguros e fiáveis".Os democratas responderam que o tratado prevê vários mecanismos de verificação (uma rede de 310 centros de controlo no mundo) e inspecções no local; que o tratado deixaria os EUA numa posição de "superioridade permanente" (uma vez que fizeram mais de mil testes nucleares durante a guerra fria); que a não ratificação é uma porta aberta para os países com ambições nucleares fazerem testes, e que desde 1992 que os EUA testam as suas armas nucleares em computador sem que ninguém tenha posto em causa a sua eficácia."A maioria republicana do Senado virou costas a 50 anos de liderança americana contra a proliferação de armas nucleares", disse Clinton.Mas apesar de os "republicanos de linha dura que irresponsavelmente forçaram a votação" terem ganho, disse o Presidente, Clinton não vai desistir: "Garanto-vos que a luta está longe de ter acabado."Em Washington, porém, ninguém acredita que o tratado regresse ao Capitólio nos próximos 15 meses.A Casa Branca repetiu que os EUA vão continuar a respeitar o tratado e que vão cumprir todos os termos da proibição.Essencialmente, porém, o tratado morreu. Sem a ratificação dos 44 países com capacidade nuclear, entre os quais os EUA, o tratado não entra em vigor. Na expressão do senador Jesse Helms, um ultra-conservador e forte opositor do tratado, foi um "funeral no Congresso".Os EUA são o primeiro país a rejeitar o tratado - a primeira vez que aconteceu desde a rejeição do Tratado de Versailles, em 1919 e em 1920.O tratado proíbe para sempre todos os testes nucleares, o que no caso significa testes subterrâneos, e foi assinado por 154 países mas só ratificado por 51. Dos 44 essenciais, só 26 ratificaram, entre os quais a Grã-Bretanha e a França.A China e a Rússia, que ainda não ratificaram, disseram ontem "lamentar profundamente" a decisão do Senado, repetiram uma "enorme preocupação", mas não deixaram claro se vão ratificar ou quando.A rejeição americana é vista como uma derrota e uma humilhação para Bill Clinton, que foi o primeiro líder mundial a assinar o tratado, em 1996, e que desde então tornou a ratificação na grande prioridade da sua política externa (em especial na última semana, com intensa campanha de "lobby").Clinton enviou o tratado para ratificação no início de 1997, mas durante dois anos o líder da maioria, Trent Lott, que controla o calendário do Senado, recusou-se a pô-lo na agenda. Depois de muitas críticas, na semana passada Lott marcou de surpresa o dia da votação.O debate que se seguiu foi um dos mais violentos desde o "impeachment" de Clinton, há um ano. Monica Lewinsky - e sobretudo a raiva de muitos senadores por Clinton ter sido absolvido - foi evidente em muitas intervenções.Ninguém foi mais directo do que o senador Jesse Helms, presidente do Comité das Relações Externas.Comentando a carta aberta que os líderes da Grã-Bretanha, França e Alemanha escreveram ao Senado, e publicana na semana passada no "New York Times", a apelar à ratificação dos EUA, Helms fez uma pequena performance para os colegas. "Tony, tenho aqui um problema. E se me enviasses uma cartita?", disse o senador Helms a fazer de conta que era Clinton a falar ao telefone com Tony Blair, o primeiro-ministro britânico. A seguir, mundando de voz, imaginou a resposta de Blair: "Oh sim, claro que faço isso. E dá os meus cumprimentos à Monica.""Os americanos têm dificuldade em compreender porque é que o voto foi marcado", disse ontem Joe Lockhart, porta-voz da Casa Branca. Se isso for verdade, é-o ainda mais para os líderes internacionais.A Rússia acusou os EUA de "desestabilizarem as fundações das relações internacionais", o secretário-geral da NATO, Lord Robertson, disse que estava "preocupado" e que esperava que esta não fosse uma "posição permanente", a União Europeia disse que o tratado "é do interesse de todos os estados como uma barreira essencial à proliferação de armas nucleares"; e o Japão disse que "os efeitos adversos são inestimáveis" e que Tóquio esperava pela "liderança americana no desarmamento nuclear".Com o golpe de Estado no Paquistão, muitos países sublinharam a urgência da entrada em vigor do tratado. A vizinha Índia, que também tem armas nucleares, disse que vai assinar o tratado, embora muitos observadores pensem que Nova Deli vai sentir menos pressão em fazê-lo. Islamabad ainda não reagiu.

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