"No Norte, a música é como o oxigénio. Agora, não podemos respirar"

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Rokia Traoré, artista do Mali, no Festival de Música de Sines

Khaira Arby, uma das mais famosas músicas do Mali, já actuou em todo o mundo, mas há um lugar que não pode visitar: a sua própria terra, Tombuctu, um sítio submerso em História e cultura e que é agora dominado por extremistas religiosos.

Um dia, forçaram a entrada na casa de Arby e partiram todos os seus instrumentos. A sua voz era uma ameaça ao islão, disseram, apesar de uma das suas canções mais famosas ser um louvor a Alá.

"Eles disseram aos meus vizinhos que, se me apanhassem, me cortavam a língua", diz Arby - a tristeza espelhada em todo o seu rosto.

O Norte do Mali, um dos mais ricos reservatórios musicais do continente africano, é hoje um vazio musical. Centenas de músicos fugiram para Bamaco, a capital, para outras cidades, para países vizinhos, afugentados pelos religiosos extremistas que decretaram que a música - excepto as melodias destinadas a acompanhar os versos do Corão - são contra a religião. Os exilados descrevem a destruição da sua cultura - tocar música vale chibatadas, às vezes penas de prisão; os leitores de cassetes e os MP3 são destruídos.

"Já não podemos viver da forma que vivíamos", lamenta Aminata Wassidie Traore, de 36 anos, cantora que fugiu de Dire, perto de Tombuctu. "Os islamistas não querem que se cante."

Na sociedade do Mali, a música era a âncora de todas as cerimónias, dos nascimentos às circuncisões, dos casamentos às orações a pedir a chuva. Os griots cantavam canções tradicionais e recitavam poemas do deserto, passando o conhecimento sobre lendas centenárias e velhos impérios, sobre heróis e batalhas. Ao mesmo tempo, contavam a história das suas comunidades. Desta forma, as memórias e as antigas tradições africanas eram preservadas e passadas de geração em geração.

Nos tempos mais recentes, as letras passaram valores aos mais jovens. Também foram usadas para denunciar os abusos aos direitos humanos e a corrupção, ajudaram a erradicar estigmas e deram voz aos pobres. "No Norte, a música é como o oxigénio", diz Baba Salah, um dos mais respeitados músicos da região. "Agora, não podemos respirar."

Em Março, depois de um golpe militar que deixou o Governo desfeito, os rebeldes tuaregues que lutaram ao lado do autocrata líbio Muammar Khadafi, uniram-se aos secessionistas e aos islamistas ligados à Al-Qaeda. Varreram o Norte, conquistando as maiores cidades no espaço de poucas semanas e dividindo este país empobrecido em dois. Pouco depois, os islamistas e os militantes da Al-Qaeda assumiram o controlo do Norte do Mali.

A morte inevitável

Impuseram a este país muçulmano moderno uma fórmula ultraconservadora da lei islâmica, uma reminiscência dos taliban do Afeganistão e das Al-Shabab da Somália. Agora, as mulheres são obrigadas a cobrir-se da cabeça aos pés. Fumar, beber álcool, ver vídeos ou fazer qualquer coisa que se assemelhe à cultura ocidental foi proibido. A nova lei é imposta à força de penas duras, como amputações e vergastadas públicas - 400 mil pessoas fugiram.

Os extremistas também destruíram os túmulos antigos e outros tesouros culturais, dizendo que são contra os principios do islão.

A morte da música era inevitável. É, provavelmentre, o laço mais forte entre o Mali e o Ocidente. Músicos como o guitarrista Ali Farka Touré (que já morreu), a banda tuaregue-berbere Tinariwen e cantores como Salif Keita exportaram a sua música para os Estados Unidos e para a Europa. Colaboraram muitas vezes com músicos ocidentais.

Desde 2001, artistas ocidentais como Robert Plant actuaram no Festival do Deserto, nos arredores de Tombuctu, transformando o Mali num destino artístico internacional. Em Janeiro, o vocalista dos U2, Bono, actuou com Tinariwen. Em Fevereiro, porém, o festival mudou-se para o vizinho Burkina Faso.

O reconhecimento internacional ajudou a que surgisse uma nova geração de artistas no Norte. Alguns usaram a fusão e juntaram as suas línguas de origem (songhai e tamashek) com o árabe e o francês. Outros misturaram ritmos tradicionais com rap, hip-hop, reggae, funk e blues. As bandas uniram instrumentos tradicionais e guitarras eléctricas. Mais recentemente, as letras versaram problemas sociais e políticos. Em Waidio, Arby canta sobre a luta das mulheres apanhadas pela guerra. Também cantou sobre o trabalho pesado nas minas de sal.

O músico de reggae Alwakilo Touré estava na sua casa em Gao a dedilhar a guitarra quando seis militantes armados lhe entraram porta dentro. Apontaram-lhe as armas à cabeça, um islamista desfez a guitarra com os pés. "A guitarra era a minha vida", diz Toure. Duas semanas depois, fugiu para Bamaco.

Numa entrevista telefónica, um comandante islamista declarou que os seus guerrilheiros vão continuar a perseguir os músicos. "A música é contra o islão", disse Oumar Ould Hamaha, líder militar do Movimento para Unidade e a Jihad na África Ocidental, um dos três grupos extremistas que controlam o Norte. "Em vez de cantarem, porque não lêem o Corão? Porque não se sujeitam a Deus e à oração? Não somos só contra os músicos do Mali. Estamos numa batalha contra os músicos de todo o mundo".

Num apartamento em Bamaco, uma dúzia de jovens artistas gravam uma canção, fusão de rap com melodias tradicionais. Todos os artistas são do Norte do Mali, nem um toca os seus próprios instrumentos, que foram queimados ou destruídos pelos islamistas. A fuga de todos para Bamaco tem um sabor amargo. É difícil ganharem dinheiro na capital. Cantam nas línguas do Norte, quando a maior parte das pessoas de Bamaco fala bamara, a língua do Sul. "As pessoas não entendem o que estamos a cantar", diz Touré. Muitos sobrevivem do que a família dá. Mas mesmo no exílio, encontraram uma forma de se manifestar contra os islamistas. "Sentimo-nos como soldados", diz Kiss Diouara, rapper de 24 anos. "Esta é a nossa forma de lutar."

Poucos minutos depois, Diouara mostra a última criação do seu grupo. Um vídeo com colagens de fotografias de islamistas destruindo antigas mesquitas. Diourra canta: "Libertem o Norte/ Queremos paz na nossa terra/ Queremos regressar às nossas casas".

Arby percebe. Sabe que poderia sair do Mali. O seu álbum de 2010, Timbuktu Tarab, foi aclamado no Ocidente. Teve a oportunidade de ir viver para os Estados Unidos, conta. Mas é o Mali, ou Tombuctu, que a inspira. "Quando penso em Tombuctu, fico perdida", diz. "Quando sonho com Tombuctu, acordo. Quando penso em Tombuctu quando estou a falar, calo-me. O meu coração está partido. Tombuctu é tudo para mim".

Exclusivo PÚBLICO/Washington Post

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