Morreu Ronald Wilson Reagan

O último aceno de adeus aconteceu só agora, mas ele já se tinha despedido há muito tempo, numa carta de duas páginas escrita à mão em 5 de Novembro de 1994, onde reconhecia que a doença de Alzheimer o empurrava paulatinamente para um abismo sem memória, para o desconhecimento de quem era, de todos, de tudo. E escreveu: "Quando o Senhor me chamar, partirei com o maior amor por este nosso país e eterno optimismo no seu futuro."Nesta frase simples e banal está muito do que foi Ronald Reagan, encontram-se as linhas que guiaram a sua caminhada política até à presidência dos Estados Unidos e os dois mandatos na Casa Branca: orgulho patriótico e esperança.Hoje, neste mundo de uma superpotência, isso parece absurdo, mas no fim dos anos 70, quando Ronald Reagan saltou da Califórnia para tomar de assalto Washington, tudo era muito diferente.Os Estados Unidos não só ainda viviam com uma intensidade demencial e flagelante a derrota no Vietname, como a presidência de Jimmy Carter agravara o estado de espírito nacional de profunda depressão. Na frente interna, a economia estava em pré-catástrofe, chegou a haver faltas de combustível. A revista "Newsweek" fazia um diagnóstico sem rodeios: "Reagan herdará a crise económica mais perigosa desde que Franklin D. Roosevelt prestou juramento há 48 anos."Fora das fronteiras, o imperialismo americano batia em retirada ou estava na defensiva perante as investidas do imperialismo da União Soviética. O sentimento de impotência adensou-se durante o último ano da era Carter, com a crise dos reféns mantidos no Irão da Revolução Islâmica do "ayatollah" Khomeini. Uma operação militar montada para os libertar falhou miseravelmente e os reféns só foram devolvidos a casa praticamente nas últimas horas do mandato do triste Carter. Nas eleições de Novembro de 1980, Carter, depois dos Estados Unidos, foi também ele humilhado.O "Grande Comunicador"Reagan e a sua equipa acreditavam que a América estava carente de uma profunda renovação, mas que para além de todas as medidas políticas teria de haver em primeiro lugar uma injecção de confiança. E o Presidente teria de ser, naturalmente, o ponta-de-lança deste exercício de acção psicológica.Ele tinha-se preparado para isso. Sim, a longa presença em Hollywood ensinara-lhe a arte de decorar e ler textos, mas acima de tudo ele deixara já provado, como governador da Califórnia, que os seus dotes de "actor político" eram francamente superiores aos de "actor de cinema" com mais de cinquenta filmes no currículo. E isso devia-se a um factor muito simples: dizia os seus discursos com uma extrema convicção. É que acreditava realmente neles.Estas convicções não foram sempre as mesmas ao longo da vida. O pai era um democrata e ele democrata foi - e liberal até, com responsabilidades na organização sindical dos actores em Hollywood. Mas, no pós-Segunda Guerra Mundial, "liberal" começou muito depressa a significar "comunista", e tornou-se então, outra vez por convicção, um conservador. Conservador mesmo, capaz de denunciar colegas como supostos comunistas no inquisitorial tempo da "caça às bruxas" que teve no senador McCarthy e no chefe do FBI J. Edgar Hoover as principais e mais odiosas figuras.O discurso inaugural de Reagan, em 20 de Janeiro de 1981, foi uma exortação a que o passar do tempo foi juntando mais e mais adesões (nas presidenciais seguintes, foi reeleito por uma margem ainda mais estrondosa)."Temos de acreditar em nós e de acreditar na nossa capacidade para executar grandes acções; de acreditar que juntos, com a ajuda de Deus, podemos e iremos resolver os problemas que agora enfrentamos. E, no fim de contas, por que não havemos de acreditar nisso? Temos todo o direito de ter sonhos heróicos. Os que dizem que estamos num tempo em que não há heróis só não sabem para onde olhar. Podem ver-se heróis todos os dias a entrar e a sair dos portões das fábricas. Voltaremos a ser um exemplo de liberdade e um raio de esperança para os que não têm agora liberdade."Um salto no tempo, para Janeiro de 1989 e para o discurso de despedida: "Esta década foi uma grande viagem, e aguentámos juntos em mares tempestuosos. E no final, juntos, atingimos o nosso destino. Tal como vejo as coisas, houve dois grandes triunfos, duas das coisas em que estou mais orgulhoso. Uma é a recuperação económica, em que o povo da América criou - e preencheu - 19 milhões de novos empregos. A outra é a recuperação do nosso moral. A América é outra vez respeitada no mundo e olham para ela à procura de liderança."Entre os dois momentos houve centenas de discursos, milhões de palavras. A acção psicológica resultou por causa dos dotes de "Grande Comunicador". E ele, anos depois: "Ganhei uma alcunha, 'O Grande Comunicador'. Mas nunca pensei que fosse o meu estilo ou as palavras que usava que fizessem grande diferença: era o conteúdo. Não era um grande comunicador, mas comunicava grandes coisas."A longa viagemOs anos de 1981 a 1989 foram, então, uma longa viagem. No percurso, enquanto captava para o seu lado muitos democratas centristas, Reagan tornou-se para os liberais o mais odiado e atacado dos Presidentes norte-americanos depois do impugnado Richard Nixon. Ele fez o que podia para isso, com as suas políticas hiperconservadoras, com o uso sem pudor da força militar em países estrangeiros, com o apoio encoberto a grupos armados anticomunistas, com escândalos que o salpicaram e fizeram rolar a cabeça de vários colaboradores próximos. Com isto e com a suas "gaffes", foi alimentando a fogueira dos ataques em que não lhe eram poupados insultos; "estúpido" e "fascista" eram os mais comuns.E, ao mesmo tempo, ia criando uma aura que o elevou acima dos Presidentes "comuns", e o tornou, porventura para sempre, reverenciado por uma boa parte do espectro político conservador, e não só, dos Estados Unidos e do mundo.Entre 1982 e 1989, a economia norte-americana cresceu a uma média anual superior a 3,5 por cento, mais do que na década anterior ou na seguinte. E o orgulho nacional cresceu a par. Olhe-se como exemplo a indústria de "entertainment": são dessa altura os filmes "Desaparecido em Combate" e "Rambo", alimentados pela ideologia e pela prática reaganiana. Eles mostram como a águia americana já não se limita a ser atingida e a mergulhar na depressão lambendo as feridas, antes reage - e ganha. A guerra fria ganhaReagan, no entanto, será sempre lembrado por muitos como o Presidente que ganhou a guerra fria, aquela que durante décadas consumiu num lume pouco visível os recursos de meio mundo. René Remond, presidente da Fundação francesa de Ciências Políticas, escreveu: "Pode dizer-se que a guerra fria acabou no dia em que [o Presidente soviético Mikhail] Gorbatchov se convenceu de que a União Soviética era incapaz de manter a corrida começada pelos Estados Unidos na 'guerra das estrelas'".A "guerra das estrelas", assim baptizada por causa do primeiro filme da saga que ainda hoje continua, e que acabava de se estrear, tinha oficialmente a designação de Iniciativa de Defesa Estratégica. Era, na prática, um sistema defensivo com mísseis, no espaço, capaz de assegurar que nenhum engenho disparado pelos soviéticos atingiria o seu alvo no Ocidente. Era um "bluff"? Talvez. Na verdade, nunca foi criado, talvez nunca venha a ser. Mas em Moscovo não se sabia isso. E para acompanhar esta nova corrida às armas era preciso dinheiro; e Moscovo não tinha dinheiro; Moscovo estava, aliás, a desmoronar-se. Num "bluff", é importante quem o faz. E aqui é crucial entender que Ronald Reagan tinha a credibilidade necessária para o lançar, em 1983. Na União Soviética acreditaram nele, sentiram-se compelidos a acompanhar a parada. Chegado ao poder, Mikhail Gorbatchov, independentemente de toda a sua genuína vontade reformadora, percebeu que estava à frente de um país que, se embarcasse na nova corrida, só apressaria a sua corrida para a falência.Ao fim de oito anos de Reagan, de combate verbal e guerra moral constante contra "o Império do Mal" (outra expressão emprestada por "Star Wars"), de apelos a Gorbatchov para deitar abaixo o Muro de Berlim, a URSS entrou em colapso. Entretanto, já Reagan e Gorbatchov eram, um para o outro "Ron" e "Misha", numa impensável cumplicidade entre inimigos. Edmund Morris, o autor da controversa biografia "Dutch" (controversa porque ele, Morris, escreve como se tivesse estado presente e acompanhado cada momento da vida do ex-Presidente), afirma que Reagan foi "um romântico histórico". Romântico por causa das suas convicções libertárias - e fundadoras dos Estados Unidos - de que o poder começa no indivíduo e acaba no Governo federal e não o contrário. Como despedida, melhor do que a sua carta de adeus serão seguramente as suas últimas palavras como Presidente: "Feitas as contas, não foi nada mau, nada mau de todo."

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