AS PREMONIÇÕES DOS RAPPERS

A comunicação social encontrou nelas sinais premonitórios, políticos de direita viram-nas como atilhos de violência: as palavras do rap francês nunca foram tão dissecadas. Com os motins nos subúrbios, os rappers, maioritariamente filhos da imigração e originários destas zonas, tornaram-se nos interlocutores privilegiados dos jovens que durante três semanas incendiaram carros e levaram o Governo a declarar o estado de emergência por três meses. Em França, os rappers andam há mais de 15 anos a alertar para a situação dos "banlieues" (subúrbios). Um mês depois do início dos motins, o PÚBLICO esteve com dois rappers em Paris, Bams, filha de camaroneses, e Hamé, do grupo La Rumeur, filho de argelinos.

Há três anos, quando o grupo de rap La Rumeur lançou o seu primeiro álbum, L"Ombre sur La Mesure, editou uma revista gratuita onde Hamé escreveu um artigo que intitulou: "A insegurança pela pluma de um bárbaro". Em plena campanha presidencial, com a Frente Nacional (partido de extrema-direita) a ganhar cada vez mais eleitores, o rapper denunciava "os abusos policiais" e o clima de "insegurança instalado" pela polícia "nos bairros populares". Pouco tempo depois, Hamé era acusado de "difamação pública da polícia nacional" e processado pelo Ministério do Interior, tutelado por Nicolas Sarkozy, do governo do partido de direita UMP. O processo durou seis horas, conta Hamé com uma expressão grave que termina num sorriso quando diz que o ganhou. Mas o Ministério recorreu da decisão e só para o ano é que saberá o desfecho. "Vamos ver se ganho uma segunda vez", continua num tom desafiador este francês filho de argelinos.
Hamé contextualiza: "Havia uma campanha muito forte contra a insegurança e contra as pessoas dos bairros pobres. A classe política e os media assustaram as pessoas dizendo que éramos selvagens, bárbaros, etc. Era uma campanha racista e o meu artigo era uma reacção. Dizia que o mais perigoso era o desemprego, ser capturado pela polícia, a insalubridade da habitação, a discriminação - uma insegurança maior de que não se fala."
Apesar de só terem lançado o primeiro álbum em 2002, os La Rumeur existem há uma década e foram-se destacando na cena musical francesa como autores de um rap subversivo e interventivo, deixando uma marca no género francês, segundo a MCM, com o lançamento de um trilogia de singles - o segundo, lançado em 1998, foi criado por Hamé, chama-se Le Franc Tireur e nele o rapper fala da memória da imigração e das lutas de emancipação.
Os La Rumeur escrevem letras politizadas mas não foram um dos sete grupos que há pouco mais de uma semana estiveram na mira dos deputados da direita, acusados de incitarem ao racismo anti-branco e ao ódio à França (foram os 113, Smala, Ministère Amer, Lunatic, os rappers Fabe, Salif e Monsieur R). Comentário de Hamé: é uma forma de "mascararem a sua responsabilidade sobre a explosão nos bairros populares", de esconderem "a sua incompetência". E lança a provocação: "Quando os governos franceses atacarem realmente o desemprego, a precariedade, o racismo estrutural, etc, escreveremos rap de karaoke."

Diferença é deficiênciaFoi em Pigalle que encontrámos Hamé, a um par de estações de metro da sua casa, no 18eme arrondissement, um bairro popular no centro de Paris onde vivem asiáticos, africanos, árabes... "Não é burguês como o bairro de Sarkozy", ironiza. Enfiado no capuz da sua sweatshirt encarnada e a caminho de um café, aponta para uma rua cheia de néons com a palavra "sexe" para dizer que estamos numa zona mista onde vivem franceses e imigrantes de várias origens mas muito visitada por turistas por causa da tal palavra.
De verdadeiro nome Mohamed Bourokba, e o mais novo de uma família de seis irmãos, Hamé cresceu no banlieue de Argenteuil - onde Sarkozy provocou a indignação ao dizer que os bairros dos subúrbios deviam ser limpos à mangueirada para acabar com aquela "gangrena" e "bando de escumalha".
O pai, argelino, operário, foi o primeiro a chegar a França, nos anos 1950, juntando-se mais tarde a mãe, que faz limpezas. Hamé conhece a Argélia de temporadas curtas, é muçulmano mas a religião é uma "coisa íntima". Quando lhe perguntamos se se sente francês ou argelino não fica propriamente exaltado mas assume um tom mais assertivo. "Não faz sentido escolher entre uma coisa e outra. Sou plenamente fruto da minha história, fruto da imigração e a imigração é plenamente fruto da história francesa. A Argélia e a França estão muito ligadas. Sim, sou francês, resultado da imigração argelina, mas sou também artista, militante e muitas coisas."
Muitas coisas incluem o rap, que o "tomou" por volta dos 14 anos - "entrou na minha cabeça como um comboio a alta velocidade" -, altura em que escrevia "pequenos textos de adolescente sobre o quotidiano". Com um mestrado (estudou Ciência Política e Sociologia dos Media), não conseguiu encontrar trabalho no meio jornalístico antes de se ter dedicado completamente à música, e este é um dos exemplos que dá sobre a discriminação em França.
Recostado na cadeira do café, fala dos banlieue como os descreve em algumas das suas rimas: são sítios onde o Estado "fechou os negros e árabes", deixando-os "apodrecer", tentando "esconder a miséria". Recua aos anos 80 para dizer: "As primeiras vítimas do desemprego maciço em França fomos nós". Referindo-se à comunidade de imigrantes e aos filhos da imigração, Hamé fala de dois "pólos" na sua condição: "Há uma opressão do tipo social, pelo facto de viver na precariedade, numa certa pobreza, e há a opressão pelo facto de ter a pele escura, de ser originário de África, da imigração e do colonialismo."
Crescer em Argenteuil implicou sentir desde muito cedo "a exclusão" no "primeiro contacto com a polícia, no facto de não ir muito a Paris, de ser adolescente e não entrar nos lugares de lazer."
A exclusão para ele quer dizer: "A sociedade faz da nossa diferença uma deficiência. Os nossos pais, que foram explorados no seu trabalho, cumpriram tarefas extremamente duras, nunca foram respeitados. Chamaram-nos em massa depois da guerra para reconstruir a França mas faziam-lhes sentir, todos os dias, que não estavam em casa deles, que eram parasitas. Isto transmite-se, mesmo que não seja pelas palavras, transmite-se nos gestos, no olhar."
Exemplos concretos de vida? Aos oito anos, durante uma aula de História sobre a insurreição liderada pelo emir Abd El-Kader (1808-1883) e consequente rendição à armada francesa, o professor, "que não suportava que os argelinos se tivessem tornado argelinos", pediu-lhe para recitar a lição. "Tive que escrever no quadro: "A grande França venceu os rebeldes argelinos." Na altura não compreendi mas é uma memória que ficou."
Foi só mais tarde, entre os 15 e os 20 anos, que percebeu "que a França oficial, o Estado pratica a discriminação". Que "em França há um racismo e discriminação estruturais". Mas que isso não é uma fatalidade: "Se os árabes e africanos estão à parte, isso decorre das escolhas políticas, de nos colocarem à parte, de nos impedirem o acesso ao centro da cidade. Há lugares para nós e há lugares onde não vamos. Mas não é como nos Estados Unidos onde sabemos que há uma barreira entre negros e brancos, uma história de apartheid. Em França também existe um apartheid mas é uma coisa muito mais hipócrita."

Herança da história colonialNão se pode compreender o que aconteceu nos subúrbios sem olhar para a forma como a França tem lidado com a sua História colonial - é uma "obrigação" começar por aqui, sublinha Hamé, que acusa a França de ser uma "potência neocolonial" que continua a servir-se de "representações" produzidas durante o colonialismo. E o colonialismo disse aos seus pais "que eram uma raça intermediária entre o macaco e o homem".
Endurecendo o tom à medida que o seu discurso se politiza, Hamé enfatiza: "Os primeiros incendiários são os que estiveram no poder ao longo destes 30 anos."
Se hoje tivesse 16 anos, "sem diploma", "com um muro" à sua "frente", faria exactamente a mesma coisa que os jovens. Os motins não o surpreenderam e diz-se espantado por não ter acontecido antes. Perguntamos então porque é que não foi a geração dele que desencadeou a "revolta". Ele "arrisca" uma explicação: a radicalização do clima social e político, o aumento do desemprego e da precariedade das condições de vida levam à radicalização do discurso político e ao uso de imagens "racistas" como a utilizada por Sarkozy.
"Não espanta que tudo se radicalize, que as revoltas se radicalizem. E radicaliza-se também a idade a partir da qual se toma consciência disto tudo. O que eu compreendi aos 20 anos esta geração compreendeu aos 13. A minha sorte é que a minha escolaridade foi boa e tive oportunidade de me apropriar das ferramentas teóricas, intelectuais, críticas para compreender o mundo à minha volta. Mas quando se sente que se é prisioneiro da sua condição, quando a própria imagem está degradada e se tem 13, 14 anos isso é algo muito violento. Eles sabem que estão condenados." Condenados ao fracasso ou à mão-de-obra, as duas coisas que se produzem nos banlieue, especifica.
Nem ele próprio, nem os jovens que incendiaram carros são desintegrados, sublinha Hamé que tem um "claro" na ponta da língua quando perguntamos se se sente integrado. "E os jovens que estiveram envolvidos nos protestos também. Mas estão integrados no subsolo, na miséria. A questão não é integrarem-nos. Recuso isso. Uma criança que faz a sua escolaridade ou até um imigrante que trabalha em França, está integrado a partir do momento em que começa a fazer parte da economia do país. A verdadeira questão não é: está integrado? É: está satisfeito com o lugar em que o colocaram? Evidentemente que não. Não se pode estar satisfeito com estar à parte de tudo, com sermos pessoas a quem se negam os direitos, alvo de xenofobia e de racismo."
Dar voz a estas "insatisfações" é o que os La Rumeur têm feito desde que se juntaram.
Eles não são políticos, não fazem Sociologia, não se excluem do sistema, são criticáveis e também contraditórios, diz Hamé. Mas a definição que fazem da sua música é politizada. "O rap é uma arte que nasceu da pobreza, trata-se de virar os seus instrumentos contra aquilo que conduziu à sua nascença. Quando criámos os La Rumeur o ponto de partida foi este: como é que pessoas que vieram de bairros precários observam, interrogam e criticam a sociedade capitalista francesa."
Mas apesar de tudo, Hamé está optimista. Acha que este é o acontecimento político mais importante do ano em França, mais do que o "não" à Constituição Europeia, e significa uma ruptura. "Sucumbiu a classe política e provocou acontecimentos políticos maiores. Isto é uma crise muito mais profunda do que pensamos. Foi como se se tivesse escondido uma cicatriz que agora se revelou."

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