Arquivo audiovisual da RTP recuperado a pensar no futuro

Guardar, preservar e descrever uma memória feita de imagens e sons. É essa a função do mais antigo arquivo das televisões portuguesas. Entre bobines de filme e cassetes de vídeo, são quase 50 anos de História, que este ano a estação vai começar a transferir para um arquivo electrónico. Por Ana Serafim

Longos corredores de prateleiras onde se empilham milhares de latas redondas de alumínio com rolos de filme, e extensas filas de cassetes de vídeo de vários formatos. É esta a imagem que se tem ao visitar os quatro armazéns do arquivo audiovisual da RTP, situado, desde os anos 80, no Prior Velho, em Lisboa. No total, são cerca de cem mil horas de registos, correspondentes a um milhão de documentos únicos.Mas não se pense que o arquivo é apenas sinónimo de depósito de conteúdos televisivos. No edifício, há inúmeras salas onde as antigas moviolas e os ultrapassados telecinemas - máquinas de funcionamento manual, para ler bobines de película - contrastam com os milhentos botões de computadores, ecrãs e leitores de vídeo. É aí que os 65 funcionários concretizam as outras funções do arquivo: gravação das emissões da estação, transcrição do material existente em cassetes de vídeo obsoletas para suportes mais modernos e catalogação dos documentos audiovisuais, para facilitar a pesquisa e a retransmissão de conteúdos.
"O essencial do arquivo é poder ser reutilizado e para isso é preciso saber o que cá temos", elucida o subdirector, Fernando Alexandre. "O trabalho do arquivo não é só guardar", ressalva Hilário Lopes, chefe do departamento de registo, recuperação e restauro. Além deste, existem o departamento de informação e o de programas e emissão, ambos para fazer a catalogação e a descrição dos conteúdos arquivados. Há ainda o departamento de apoio a serviços e acesso externo, encarregue de satisfazer os pedidos de outras televisões ou de particulares quando querem pesquisar ou comprar imagens pertencentes à RTP.

Recuperar o Arquivo HistóricoÉ no departamento de registo que diariamente se faz a gravação integral do que os seis canais da RTP transmitem. No final de um ano, a soma de conteúdos recolhidos ronda em média as 8000 horas, conta Fernando Alexandre.
É também neste departamento que está a ser transcrito e restaurado o Arquivo Histórico da RTP, que inclui cerca de 310 mil documentos em filme, equivalentes a 25 mil horas de conteúdos audiovisuais. Este acervo corria o risco de se perder devido ao agravamento do "síndrome do vinagre" - um mal causado pela formação de ácido asséptico (o ácido do vinagre), em resultado da exposição da película a níveis de temperatura e humidade inadequados. "O filme entra em decomposição química e ao fim de um tempo é uma pasta", alerta Fernando Alexandre, acrescentando que, do património fílmico da RTP, "só cerca de cinco por cento é que está gravemente atacado e a esse é que está a ser dada prioridade". Mesmo assim, não deixa de ser notório o aroma a vinagre nos depósitos onde estão armazenadas as bobines de filme.
O arquivo histórico inclui ainda conteúdos em suportes de vídeo obsoletos, que já não podem ser visualizados porque já não se adaptam aos novos leitores existentes nas estações de televisão, e que também estão a ser transcritos.
Para salvaguardar o seu espólio, a RTP iniciou, em Janeiro de 2004, um processo de conservação física e de digitalização de documentos audiovisuais, num investimento que ronda os 13 milhões de euros. Os conteúdos em vídeo estão a ser copiados para formatos digitais pela RTP. Os registados em filme foram entregues à Tóbis Portuguesa, contratada para transcrever cerca de 15 mil horas de imagens e sons.
Na Tóbis, os documentos passam por um processo de limpeza ultra-sónica, ou seja, a seco e através de vibrações, para tirar poeiras agarradas à película, após o que são copiados para vídeo digital, explica Fernando Alexandre.
Depois, os originais fazem jus ao seu valor museológico e são entregues à Cinemateca, encarregue de os conservar em instalações climatizadas, para travar os efeitos do "síndrome do vinagre", e as cópias são enviadas à RTP. Aí as imagens são submetidas a um processo de restauro, que consiste na eliminação de riscos, de saltos e de grão, e no ajuste da luminosidade e brilho. "É um processo muito lento e gradual", frisa Hilário Lopes, pormenorizando que restaurar imagens significa vê-las plano a plano e, através de programas informáticos, corrigir as imperfeições e minimizar a deterioração causada pelo tempo. E frisa que só assim é possível ter um canal como o Memória, que re-exibe conteúdos arquivados pela RTP.

Descrever para lembrar e reutilizar
Memória. É esse outro dos sinónimos que define um arquivo. "É a memória de um país, e não há outra. É importante não a perder", considera Fernando Alexandre, salientando que o espólio audiovisual da estação pública é o maior e o mais antigo das televisões nacionais, possuindo conteúdos desde a sua estreia, incluindo imagens da primeira emissão televisiva portuguesa, a partir da Feira Popular (a 4 de Setembro de 1956).
""O know-how" [saber-fazer] destas coisas dos arquivos está aqui na RTP", concorda Margarida Vicente, chefe dos departamentos de programas e de informação do arquivo da RTP. Margarida tem uma experiência de 16 anos como documentalista, uma função que passou a coordenar em 2004 e que consiste na catalogação e descrição de todos os conteúdos em bases de dados. Trata-se de apontar o título, duração, data de emissão, canal e suporte de cada documento audiovisual e de o identificar com palavras-chave e textos descritivos.
"O programa mais difícil de catalogar é o Telejornal, que demora cerca de oito horas a um documentalista experiente", justifica Hilário Lopes, dando conta da minúcia que é preciso emprestar à tarefa. "Por vezes precisamos de um pormenor, um aperto de mão, uma frase específica de um discurso, e tem de ser fácil de encontrar", acrescenta Margarida Vicente. O entretenimento e ficção também têm uma secção própria, mas a sua catalogação não exige tanto detalhe.
"Quando nos pedem alguma coisa, é tudo para ontem. E pedem-nos as coisas mais extraordinárias que se possa imaginar", revela Margarida Vicente. Imagens dos casamentos de Santo António, excertos das mensagens de boas festas enviadas, através da televisão, pelos soldados no Ultramar para as famílias em Portugal, ou programas onde apareceram pessoas que ali se dirigem com o intuito de ficar com uma recordação ou oferecer aos familiares.

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