Viagem ao Porto dos escritores

Há um Porto que não entra nos roteiros turísticos. Um Porto que passa despercebido ao olhar que se fixa na monumentalidade e que permanece nos lugares-comuns. Descobrir o Porto de escritores que aí nasceram ou, em dado momento da sua vida, aí viveram, como Almeida Garrett (1799-1854), Ramalho Ortigão (1836-1915), António Nobre (1867-1900), Camilo Castelo Branco (1825-1890), Raul Brandão (1867 -1930), Júlio Dinis (1839-1871) - só para citar alguns nomes mais marcantes, uma vez que muitos mais viveram nesta cidade -, não se adivinha tarefa fácil. Onde nasceram estes escritores, onde viveram, onde foram sepultados? Mergulhar no passado e na procura desses lugares exige um esforço redobrado, já que a informação que nos poderá revelar o sítio onde Camilo Castelo Branco escreveu o seu "Amor de Perdição" ou onde Almeida Garrett se inspirou para escrever o "Arco de Sant'Ana" não se encontra numa única fonte. Para elaborar este roteiro, contribuíram algumas das obras destes escritores, como "Os Pescadores" e "Memórias" de Raul Brandão, que muito escreveu sobre a Foz do Douro, onde passou a sua infância e que muito caracterizou os seus escritos, e a antologia de Eugénio de Andrade "Daqui houve nome Portugal", dedicada ao Porto, assim como as biografias e obras que outros autores sobre eles fizeram. Também o "Percurso Garretiano", único circuito elaborado pela divisão de Turismo da Câmara Municipal do Porto, artigos do já desaparecido jornal portuense "O Tripeiro" e a orientação de Mário Cláudio ajudaram a esta recolha. Refira-se que este escritor organizou, em 2001, dez percursos em torno do imaginário de alguns escritores da cidade.Da dificuldade em descobrir esses lugares se denota que muito trabalho há a fazer na preservação e na divulgação deste património. Algumas das casas mencionadas têm uma placa informativa, mas não são consideradas património cultural, nem há um levantamento, por parte da câmara municipal, de todas as casas que existem.TEXTO 1 (juntar foto ao alto Igreja dos Grilos)Almeida GarrettA inspiração do Arco de Sant'AnaGarrett nasceu na Rua Dr. Barbosa de Castro (antiga Rua do Calvário), próxima dos Jardins da Cordoaria, na casa n.º 37-41, e aí viveu até aos cinco anos, deslocando-se depois para Vila Nova de Gaia. A meio do primeiro andar da casa, de características setecentistas, num medalhão oval em gesso, colocado pela Câmara Municipal em 1864, uma inscrição homenageia a memória do autor de "Viagens na Minha Terra". Alguns edifícios são emblemáticos, como a Igreja de Santo Ildefonso, onde Garrett foi baptizado em 1799, e o edifício do Colégio de S. Lourenço/Igreja dos Grilos (na foto) onde o poeta esteve aquartelado durante o cerco do Porto, a partir de Julho de 1832, e onde deu início ao romance "O Arco de Sant' Ana: crónica portuense", inspirado na Porta ou Arco de Sant'Ana, colocado a "meio da rua, que se sobe para chegar ao Largo do Collegio de S. Lourenço". Do arco, na Rua Santana, apenas resta uma porta que dá acesso à imagem da santa. Em 1954, foi colocada uma estátua em sua homenagem, no âmbito das comemorações do 1.º centenário da sua morte, em frente à Câmara Municipal. Os restos mortais de Garrett encontram-se no Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa, mas no Cemitério da Lapa não deixa de existir uma sepultura, desgastada pelo tempo, em sua homenagem. TEXTO 2Júlio DinisUm busto no Largo Abel SalazarJúlio Dinis (1839-1871), pseudónimo de Joaquim Guilherme Gomes Coelho, nasceu no Porto e foi entre esta cidade, Ovar e o Douro que passou grande parte da sua vida. Em 1853 já estava matriculado na Academia Politécnica do Porto, entrando três anos depois para a Escola Médico-Cirúrgica, onde se declarou a sua vocação de escritor. Em 1852 e 1853, residiu na aldeia de Noêda, freguesia de Campanhã, com a família de seu primo, o Sr. José Joaquim Pinto Coelho. Quando frequentava o primeiro ano da Academia Politécnica, travou conhecimento e manteve uma íntima amizade com o poeta Soares de Passos, e desta circunstância lhe proveio o amor às belas letras. No regresso da sua terceira viagem à Madeira (Maio de 1874), a tuberculose de que padecia tornou-se alarmante, e, em Junho, o escritor foi habitar com a família do seu primo, para a Rua de Costa Cabral, onde viria a falecer. A casa foi, entretanto, demolida. Nos seus livros "Os Fidalgos da Casa Mourisca", "A Morgadinha dos Canaviais" e "Uma Família Inglesa" podem encontrar-se muitas referências à cidade onde nasceu. Nesta última obra fala do bairro oriental, onde estava integrada a actual Rua de D. João IV. Ainda hoje aí se podem encontrar antigos palacetes que os brasileiros mandaram construir. Morreu aos 32 anos de idade, tendo sido sepultado no cemitério de Cedofeita, juntamente com o seu irmão José Joaquim Gomes Coelho Júnior. Também este escritor tem um monumento que lhe é dedicado. Localizado no Largo Professor Abel Salazar, trata-se de um conjunto escultórico, constituído por uma figura feminina que coloca uma coroa de flores junto do busto do poeta, com um baixo-relevo, "A Leitura em Família", a adorná-lo.TEXTO 3 (juntar foto ao alto da cela nº 12)Camilo Castelo BrancoMistérios de uma cela conturbadaAs paredes graníticas da Cadeia da Relação albergam as memórias de um amor conturbado. Na cela n.º 12 (na foto) esteve encarcerado (1860/61) Camilo Castelo Branco por ter mantido relações sexuais com uma mulher casada. Ana Plácido foi igualmente presa e esteve instalada num corredor por não haver celas para senhoras da sociedade. No cárcere, Camilo continuou a escrever (reza a lenda que escreveu "Amor de Perdição" em quinze dias) e, na cela com janela para o Douro, teve como companheiro José do Telhado, que o sossegava quando Camilo era invadido pelo temor de que o marido enganado, Pinheiro Alves, teria subornado um outro preso para o matar. Camilo encerrou o seu livro "Memórias do Cárcere", desabafando: "Fecham-se as memórias. Eu devia ter dito porque estive preso um ano e dezasseis dias. Não disse, nem digo, porque verdadeiramente ainda não sei porque foi". A vida académica no Porto deste escritor nascido em Lisboa ficou marcada pela sua inscrição na Academia Politécnica e na Escola Médica do Porto, em 1843. A passagem de Camilo pelo Porto ficou também celebrizada pelo duelo na Torre da Marca com Freitas Barros. Em 1846, Camilo apaixona-se por uma rapariga de Vila Real, foge com ela para o Porto e é mandado prender pelo tio dela.Em 1848, fixou-se no Porto, iniciando uma vida de boémia e causando alguns escândalos de natureza amorosa. Faz ainda parte do grupo «Leões» do Café Guichard, o qual já não existe, apenas sobrevivendo a esquina (da Praça Nova, actualmente chamada da Liberdade). "A maledicência do Café Guichard era a vingadora das vítimas do 'Palheiro' em particular e da botica em geral. Nós profligávamos a corrupção dos velhos, a putrilagem purulenta que infeccionava, com a língua, toda a florescência das almas novas", descreveu, em "Serões de S. Miguel de Ceide". O Águia D'Ouro era também um café habitual. Em 1850, matriculou-se no Seminário do Porto. Em 1868, Camilo voltou a esta cidade e dirigiu a Gazeta Literária. Camilo foi sepultado no cemitério da Lapa, no túmulo de Freitas Fortuna (1840-1899), a seu desejo, como revelou numa missiva enviada em 1888 ao seu amigo Freitas: "Revalido, por esta carta, o que lhe propus com referência ao meu cadáver e ao seu jazigo no cemitério da Lapa. Desejo ser ali sepultado e que nenhuma força por consideração o demova de me conservar as cinzas perpetuamente na sua capela". Até hoje se encontram neste local os seus restos mortais, assim como, na Ordem da Lapa, manuscritos da correspondência entre Camilo, Ana Plácido e Freitas Fortuna e numerosos objectos camilianos, como o revólver com que se suicidou, uma caixa de prata para rapé, com a última anotação que utilizou, a luneta, a pena e a lapiseira-pena que lhe serviram nos últimos tempos, um livro de Droz que Camilo começou a traduzir na Relação, um búzio que serviu a Camilo de pisa-papéis e o seu tinteiro predilecto. Uma estátua foi colocada na Avenida de Camilo.TEXTO 4Raul BrandãoUma casa na Foz VelhaRaul Brandão nasceu na casa n.º 62 da rua com o seu nome, na "velha casa abandonada" depois da morte de seu pai e sua mãe. Aqui viveu a sua infância, que tanto evoca em "Memórias", escrito na Cantareira: "Esta Foz de há cinquenta anos, adormecida e doirada, a Cantareira, no alto o Monte, depois o farol e sempre ao largo o mar diáfano ou colérico, foi o quadro da minha vida". A casa, constituída por dois andares, situa-se junto aos jardins do Passeio Alegre, junto ao mar. O Jornal de Noticias homenageou-o, colocando aí uma placa informativa em 1940: "Nesta casa nasceu em 12 de Março de 1867 o glorioso escritor Raul Brandão cuja obra é das mais belas da literatura de Portugal". A casa encontra-se hoje em bom estado de conservação, pertencendo a particulares. No livro "O Porto de Raul Brandão", de Albano Martins, podem encontrar-se algumas referências à vida deste escritor na cidade nortenha. Raul Brandão, depois de ter feito os estudos preparatórios no Colégio de S. Carlos, matriculou-se na Faculdade de Letras, tendo criado, com António Nobre, Justino Montalvão Machado, Hamilton de Araújo e Joaquim de Araújo o grupo iconoclasta "Os Insubmissos", que coordenou a publicação de uma revista com o mesmo título. As suas reuniões eram no Café do Camanho, à Praça Nova (antiga Praça das Hortas), onde falavam de política. A Câmara Municipal colocou em 1967, no Jardim do Passeio Alegre, na Foz, um monumento ao grande amante do mar, como se deduz pelos seus escritos: "Se eu fosse pintor, passava a minha vida a pintar o pôr do sol à beira-mar. Fazia cem telas, todas variadas, com tintas novas e imprevistas. É um espectáculo extraordinário" (em "Pescadores").TEXTO 5Ramalho Ortigão e António Nobre (juntar foto ao baixo da estátua de Ramalho)Dois vultos na CordoariaNo Jardim João Chagas (Cordoaria), dois escritores que viveram na mesma época juntam-se num mesmo espaço. A figura altiva e de olhar recto de Ramalho Ortigão (na foto), segurando a cartola numa das mãos e as luvas na outra, está imortalizada sobre um pedestal de granito desde 1953 neste jardim da Cordoaria. Porém, não se encontra nenhuma inscrição visível que refira o seu nome. Perto de si, mas imbuído no jardim, num local solitário, uma escultura de António Nobre - um busto de bronze colocado numa espécie de altar, com ramos de flores, onde se citam as obras de António Nobre "Só" e "Despedidas"- imortaliza o seu rosto. O conterrâneo Garrett era a paixão comum a estes dois escritores, exercendo muita influência na sua escrita. "Ficou-me de cor, penetrou-me inteiramente, entrou-me, por assim dizer, na composição do cérebro, e na massa do sangue, esse livro de um encanto tão sugestivo e avassalador", escreveu Ramalho Ortigão; e "...às ocultas, eu trazia, no seio, um livro, e lia, lia, lia, Garrett da minha paixão", conta António Nobre a respeito de "Viagens na minha terra". Das casas onde viveram não há referências precisas. Há escritos que indicam que Nobre viveu numa casa na Rua de Santa Catarina e que, na Foz, veio a falecer, mas não foi possível descobrir os lugares exactos. Ramalho foi sepultado na Lapa, ao lado do local onde existiu o velho colégio que foi, no Porto, o centro da sua vida social e profissional. No colégio da Lapa deu aulas de Francês, onde teve como aluno Eça de Queirós (1845-1900), apenas nove anos mais novo que o professor, com quem escreveu "O Mistério da Estrada de Sintra" e "As Farpas" e participou na "Geração de 70". Por causa da "Questão Coimbrã", Ramalho chegou a bater-se em duelo com Antero de Quental nos Jardins da Arca D'Água por não concordar com a crueza das suas afirmações em relação a Castilho.TEXTO 6Guerra JunqueiroO homem da casa-museuO escritor Guerra Junqueiro é um dos poucos que têm a si dedicada uma casa- museu, organizada pela sobrinha. O edifício, situado na Rua D. Hugo, não é a casa onde nasceu ou viveu, mas celebra a memória do escritor e expõe as colecções de arte que lhe pertenceram. Guerra Junqueiro (1850-1923) nasceu em Freixo de Espada à Cinta. Quando, em 1905, visitou a Academia Politécnica do Porto, instalou-se nesta cidade, passando grande parte da sua vida entre a Rua da Boavista e a Rua de Santa Catarina, sempre em casas alugadas de tamanho reduzido. O poeta diz que, quando novo, era costume ir a serões e muito impressionou as freiras e seculares no Convento das Freiras Beneditinas de S. Bento de Ave-Maria (actual Estação de S. Bento). Contou ele: "O Camilo, o Passos, o Caldas, o Nogueira Lima e o Faustino se digladiavam, entre sorrisos e cálices de Porto, com os complicados motes que das grades lhes atiravam as donzelas cativas".

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