Tongobriga, cidade descoberta

As histórias de mouros sempre fizeram parte do imaginário popular das gentes do Freixo, uma pequena aldeia a dois quilómetros do Marco de Canaveses. Lendas e mistérios para os quais a população encontrou uma prova indecifrável nas ruínas de uma gigantesca parede, vislumbrada entre uma teia de silvas. Chamaram-lhe então a "mesquita dos mouros", não imaginando, contudo, que aquela era a parte visível das ruínas de uma cidade romana, fundada nos finais do primeiro século da era cristã. Ao longo de 19 anos, as investigações da Estação Arqueológica de Freixo já permitiram inventariar mais de cem mil peças, mas a estrutura residual em que se transformou a aldeia é também alvo das acções do Ippar. Inserido na área arqueológica, o núcleo urbano de Freixo tem vindo a receber obras de recuperação e restauro, transformando o pequeno aglomerado numa excepção ao caótico plano urbanístico do Marco de Canaveses. Intervenções recentes já recuperaram várias habitações, o edifício onde está instalada a Escola Profissional de Arqueologia e, à entrada da aldeia, procede-se actualmente à demolição de um imóvel que destoava da harmonia arquitectónica de Freixo. "De facto, os romanos marcaram este território com o seu gosto e o seu conhecimento. Mas, o Freixo do século XXI não pode desmerecer a Tongobriga de há 2000 anos", aponta Lino Tavares Dias. A curiosidade dos investigadores pelo Freixo persiste desde o século XVIII, época a partir da qual foram descobertos diversos vestígios arqueológicos de difícil interpretação. Em 1882, o arqueólogo Francisco Martins Sarmento recolhe, na borda de um poço, um bloco granítico, cuja ara tem uma inscrição dedicada ao deus Toncobricensium. As restantes inscrições talhadas no granito apontavam para a existência de uma povoação situada num ponto alto e a referência do geógrafo grego Ptolomeu (século II) a "Tuntobriga", uma localidade situada entre Douro e Minho, cativou ainda mais o interesse dos especialistas pela aldeia. Em 1980, data do início das escavações, coordenadas pelo historiador Lino Tavares Dias, a povoação de Freixo começou a assistir ao renascimento de uma cidade de médias dimensões, cuja localização estratégica - integrada na via principal que ligava Bracara Augusta (Braga) a Emérita Augusta (Mérida), capital da província da Lusitânia - terá sido determinante para a constituição em Tongobriga de um centro estruturado do poder. Conjuntura para a qual terá igualmente contribuído o facto de a cidade estabelecer a ligação entre os rios Tâmega e Douro. Cerca de 19 anos depois, os resultados das sondagens e escavações já colocaram a céu aberto zonas habitacionais, a área das termas, o "forum" (praça pública e centro administrativo e político da cidade) e uma necrópole de incineração. As localizações do teatro e do circo foram já identificadas por fotografias aéreas, e somente a morosidade dos processos de aquisição de terrenos, por parte do Instituto Português do Património Arqueológico e Arquitectónico (IPPAR), impede o início das escavações. Prenunciando a existência de um complexo conjunto arquitectónico e tentando evitar a dispersão dos achados, o então Instituto Português do Património Cultural (IPPC) procedeu à instalação, em 1981, de um gabinete de estudo e apoio laboratorial, com a direcção científica, gestão e coordenação a cargo de Lino Tavares Dias, actual director regional do Porto do Ippar.Cinco anos mais tarde, é construído um edifício próprio - completamente integrado na malha arquitectónica da aldeia - e todas as tarefas desenvolvidas no âmbito das investigações de Tongobriga ficaram asseguradas por técnicos e funcionários da Direcção Regional do Porto do Ippar. Finalmente, em Janeiro último, o gabinete da Área Arqueológica de Freixo - denominação que corresponde a cerca de 50 hectares de terreno, classificados como monumento nacional - foi formalizado como Serviço Dependente do Ippar e foi-lhe atribuída a designação de Estação Arqueológica de Freixo. Actualmente, as escavações de Tongobriga são também asseguradas por alunos da Escola Profissional de Arqueologia, sediada na Área Arqueológica de Freixo, que utilizam todo o espaço classificado como oficina diária.As intervenções realizadas na Área Arqueológica de Freixo são regularmente apresentadas em conferências nacionais e internacionais e os resultados das investigações desenvolvidas entre 1980 e 1995 serviram de suporte para a tese de doutoramento de Lino Tavares Dias, editada pelo Ippar em 1997. A partir dos vestígios que indicam uma transposição literal do modelo de vivência romano para Tongobriga, os arqueólogos conseguiram reconstruir um painel de hábitos sociais e económicos que permitiu distinguir, a título de exemplo, a existência de produção artesanal. Atendendo ao espaço de ocupação das áreas residenciais - entre cinco a sete hectares -, Lino Tavares Dias aponta para uma população de aproximadamente 2500 pessoas e a recente descoberta de uma "domus" (casas das elites), há cerca de duas semanas, veio corroborar a tese de Tongobriga ter sido "um centro de atracção e decisão administrativa". A opulência da cidade manteve-se até ao século V, mas o declínio do Império Romano, no Ocidente, resultou numa "retracção da ocupação do espaço", explica António Lima, um dos arqueólogos da estação de Freixo. "Tongobriga perde o estatuto de cidade, passando a ser uma paróquia sueva". Durante o século II, no auge desta cidade romana, o "forum", localizado na periferia da malha residencial, constituía o centro de confluência de espaços comerciais e religiosos. Próximo deste espaço estavam as termas públicas, talvez o achado mais imponente das escavações. Para a construção destas termas, os romanos desactivaram um balneário castrejo, descoberto pelos arqueólogos no afloramento granítico. O ritual do banho compreendia também o exercício físico ou as conversas com os amigos e numa área de 1400 metros podem ser facilmente identificados os vestiários e as salas para banhos e massagens, para as quais era utilizado azeite. Nas áreas habitacionais exumadas, as escavações conduziram à descoberta de casas com compartimentos de pequena dimensão, alguns deles construídos sobre o granito de habitações de planta circular, datadas do século I. Tal como acontece no "forum", também nestas zonas se adivinha o cuidado dos romanos na construção de sistemas de drenagem de águas pluviais. Um esmero que a actual aldeia do Freixo - com aproximadamente cem habitantes - parece não querer desmerecer.

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