Paraíso perdeu exclusivo e já há martelos que vêm da China

Apesar de toda a concorrência, a histórica fábrica que criou o martelo de S. João, no Porto, ainda detém 50 por cento do mercado.

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Helena decide as combinações de cores, a pensar no mercado NFACTOS/Fernando Veludo

Ainda à porta da pequena fábrica em Rio Tinto, que já foi só de brinquedos, pode-se adivinhar a proveniência do inconfundível som dos martelinhos de São João.

Começaram por se chamar martelos musicais. Isto, antes de uma manobra de marketing não-intencional de Manuel Boaventura, antigo dono da Estrela do Paraíso, inventor do martelinho, e avô do actual proprietário, ter introduzido nas festas populares portuenses aquele que se viria a tornar um dos seus símbolos distintivos.

Mas quando, em 1963, Manuel Boaventura criou o primeiro martelo musical, inspirado pela forma de um saleiro-pimenteiro que viu num restaurante no estrangeiro, não podia prever o sucesso que o objecto iria ter. Inicialmente, conta o seu neto, estes brinquedos praticamente não eram vendidos.

Mas o que parecia um falhanço acabou por descobrir uma oportunidade. Quando os estudantes portuenses pediram ao fabricante que lhes fizesse um brinquedo barulhento, para utilizarem no cortejo académico, Boaventura aproveitou para esvaziar o stock de martelos musicais. Um mês e tal depois da Queima das Fitas do Porto, muitos levaram os brinquedos para a noite de São João. "E a moda pegou", até hoje.

Durante os 48 anos de vida da invenção de Manuel Boaventura, a fábrica mudou-se da Rua do Paraíso, no Porto, para a Rua do Patronato, em Rio Tinto, Gondomar. A empresa desistiu de fabricar apenas brinquedos, para apostar nos objectos domésticos e industriais. Passou de pai para filho duas vezes e começou a sofrer a competição de outros produtores de martelos de São João, sediados no concelho vizinho de Ermesinde, em Espanha e até no país do outro lado do mundo que se afirma cada vez mais como gigante da produção industrial: "Vêm da China directamente para o São João, por incrível que pareça", conta o proprietário da fábrica e neto do inventor, Manuel Marinho.

"Copiaram todos daqui! Até os chineses vieram lá de tão longe para copiar", exclama Manuel Ribeiro, o funcionário mais antigo da fábrica. Na sala das máquinas, esforça-se para contar, acima do ruído das máquinas, como veio parar à Estrela do Paraíso pouco depois da invenção do martelo, já lá vão 47 anos. No início, eram os próprios funcionários da fábrica que iam para a rua vender o brinquedo. "Cheguei a ir vender na estação de comboios de Ermesinde [de onde é natural] e deixava-os logo todos lá".

Mesmo com a concorrência, metade dos brinquedos, que em grande parte acabaram por substituir o alho-porro, está marcada com a estrela que é o símbolo da empresa. "Como pode imaginar, eles [produtores estrangeiros] têm preços mais baixos, embora a qualidade não tenha nada a ver. E nós continuamos a ter um grande mercado por causa disso. Temos martelos mais tradicionais, com mais qualidade, e o cliente continua a preferir o nosso material", explica o orgulhoso herdeiro da invenção, Manuel Marinho.

Mas a Estrela do Paraíso não ficou imune à entrada de produtores estrangeiros no mercado. Nos últimos dez anos, a fábrica viu a sua produção de martelos diminuir "drasticamente". "Fazíamos para aí meio milhão de martelos e agora fazemos cerca de duzentos mil" por ano, calcula o proprietário.

Uma a uma, as marretas, a versão maior do brinquedo, saltam das mãos de Glória Fernanda para a pilha pronta para distribuição, junto a uma parede cinzenta da fábrica. Depois de introduzir o cabo no topo de plástico, bate na própria mão para "ver se ele toca" e atira o martelo pronto para o monte. O movimento é repetido mecanicamente por esta funcionária, há 24 anos na Estrela.

Do outro lado da mesa escondida sob um arco-íris de peças de plástico à espera de serem coladas, Helena inventa combinações cromáticas, não totalmente por acaso. Para além dos martelos mais coloridos, há-os apenas com as cores nacionais ou a azul e branco, muito populares localmente, mas com menos sucesso no resto do país. Quando produz para vender no Norte, Helena aposta mais no azul; quando é para o Sul, no vermelho. E as cores "da selecção" vendem mais em anos de Europeu ou Mundial. Helena ainda se lembra de quando tinha oito anos e vivia nesta rua. Vinha com outras crianças para a porta da fábrica buscar martelos para a festa. "Mal eu sonhava que viria para aqui trabalhar", comenta a funcionária que começou a trabalhar na empresa quando tinha apenas 11 anos. Para aqui ficar já lá vão 42 anos.

Salvo no Supremo

Para quem hoje se passear pelas ruas do Porto, na noite de São João, será difícil imaginar que usar o já tradicional martelo de plástico nesta festa já deu direito a multa. Mas, no início dos anos 70, a Câmara Municipal e o Governo Civil do Porto "acharam que o martelo ia contra as tradições de São João", conta Manuel Marinho, e o seu uso passou a ser sancionado com uma multa.

"Apanhava-se uma multa de setenta escudos, na altura. Para ter uma ideia, ganhava-se cerca de 30 escudos por mês ", enfatiza o proprietário actual da Fábrica Estrela do Paraíso. Quando o inventor do brinquedo, Manuel Boaventura, foi obrigado a interromper a produção de martelos, decidiu recorrer aos tribunais, relata o seu sucessor. Mesmo assim, durante esse período, que durou "cinco ou seis anos", os portuenses não deixaram de usar o brinquedo, conta Marinho, baseado em relatos do seu avô.

Em 1973, depois de perder na primeira e na segunda instâncias, Manuel Boaventura conseguiu que o Supremo Tribunal de Justiça o autorizasse a retomar a produção. Desde então, o martelo musical foi também adoptado noutras festas populares, como o São João de Braga ou o de Vila do Conde, o São Pedro da Afurada (Gaia), o Carnaval de Torres Vedras ou em festas de passagem de ano.

 

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