visto no indie

Os festivais de cinema tiveram origem no seio de uma instituição consagrada às artes visuais, a Bienal de Veneza. Essa origem patenteia-se ainda no nome, Mostra Internazionale del Cinema, que sugere de imediato que o objectivo fundamental é "mostrar", "dar a ver". Sucede, contudo, que a lógica competitiva, que em princípio é a de dar um destaque particular a determinadas obras, tem vindo a sobrepor-se a níveis exorbitantes; mal um festival se começa a destacar, logo na sua cobertura pública começa o fetichismo do factor competitivo, quando ele devia ser encarado em termos supletivos.
Assim ocorre a retórica de anunciar "um dos principais favoritos", facto que tantas vezes não tem qualquer correspondência. Mas o mais inquietante é que, necessitando as manifestações de uma cobertura diária da imprensa, se entrou num circuito absolutamente perverso: a organização faculta previamente à comunicação social cópias em cassete ou DVD dos filmes, e portanto quem sobre eles escreve, que vamos supor serem críticos, não tem deles uma percepção enquanto objecto de cinema; ao mesmo tempo, escasseia o trabalho propriamente jornalístico, in loco, sobre as condições em que um festival decorre.
Vem isto ora a propósito do Indie Lisboa. E porque antes de entrar na matéria que importa, os filmes, há que lembrar o facto óbvio que, sendo objectivo de um festival "dar a ver", ele não se reduz à competição, e o relevo de festivais genericamente dedicados a áreas de produção independente ou exógeno faz-se também muito das suas propostas retrospectivas. E há que atender também às condições de visibilidade.
Creio que os organizadores do Indie se aperceberam que fizeram um erro na proliferação este ano da secção Herói Independente, com nada menos que quatro retrospectivas, Nobuhiro Suwa, Edgar Pêra, Michael Glawogger e Jay Rosenblatt, com a inevitável consequência de uma menor visibilidade ou pelo menos destaque público de algumas dessas. Como espectador de cinema e usual frequentador de festivais, não posso ainda deixar de assinalar estranheza pelo facto de o Indie se ter alargado este ano aos cinemas Londres, manifestamente sem condições para tal acolhimento - intervalos em projecções de festivais era-me algo de inédito.
Se o sucesso de público é um facto assinalável, e que, aliás, acrescido de outros exemplos, justifica uma outra e necessária reflexão, é importante chamar a atenção que um festival não pode cair também na fetichização na expressão quantitativa do seu sucesso.
E, posto isto, breves memórias de alguns filmes ou obras:

Filmes de Michael Glawoger - Megacities, de 1998, fez a reputação internacional deste austríaco. Àquele documentário seguiu-se Workingman"s Death, de 2005. Entretanto Glawoger retornou também à ficção, com Slugs e Slumming, que não vi. A percepção é, portanto, parcelar, mas, ainda assim, de uma muito importante obra documental e marcadamente conceptual. Por um lado, dois filmes "austríacos", War in Vienna e Zur Lage - State of the Nation: Austria in Six Chapters, filme colectivo com Ulrich Seidl, Barbara Albert e Michael Sturminger; por outro, esses dois referidos megadocumentários de um mundo globalizado. O enunciado permite aperceber a hipótese de um campo/contracampo genérico: a Áustria e o Mundo. Em War in Vienna há um subtexto, quase imperceptível, mas fulcral: o "caso Waldheim" e o isolamento internacional da Áustria. Mas hoje está "isolado" algum país do Primeiro Mundo, quando justamente o mundo, ou que se supõe serem imagens deles, nos entra pela casa dentro? War in Vienna é a montagem do quotidiano anódino com as cenas do mundo. Com todo o desconforto, também. Desconforto que no caso de Zur Lage é uma outra vez o "mal da Áustria", como nos textos de Bernhardt ou de Jelinek, mas num momento concreto - um inquérito aquando da ascensão de Haider, com o qual ninguém parece concordar, excepto que, chamando-lhe ainda nomes, "idiota", etc., se vão repetindo os mesmos argumentos, sobretudo sobre os imigrantes, ou o "mundo" que entra pela "Áustria" dentro, e não apenas em imagens de TV.
Se Megacities era uma compilação de situações colhidas em grandes metrópoles do planeta, uma indagação sobre o modo como se vê o mundo, a vocação do viajante globalizado atém-se em Workingman"s Death, com um outro tempo interno, a cinco ou seis situações específicas. O primeiro é um filme da velocidade deste tempo globalizado, o segundo um inquérito interno aos tempos de trabalho e rituais associados, inclusive ideologias e mitologias do "trabalhador" - extraordinário filme político, Workingman"s Death começa em Dombass, na Ucrânia, no confronto com a imagem estalinista do produtor exemplar Stakhanov, passa por situações pré-industriais em Java e na Nigéria, ou pela destruição de navios no Paquistão, e conclui-se (exceptuado o epílogo, no Ruhr) na China ainda de imagerie maoísta.
Filmes de Jay Rosenblaum - No Indie passado tinha sido apresentada a curta-metragem Phantom Limb, evocação da morte do irmão. Eis mais um outro autor seguindo o preceito my life as a film: home made movies, found footage, imagens de memórias e arquivos - o cinema é um acto de concepção e de composição, de testemunho também, de relato, não se atendo à noção de "acto de filmar". De facto, Rosenblaum também filma - os novos home movies, o crescimento da sua filha como em I Used to Be a Filmmaker (a paternidade fez-lhe lembrar o facto). Mas sobretudo lembra-se, como em Phantom Limb. Lembra-se de em criança ter sentido a culpabilização, como judeu, de ser co-responsável pela morte de Cristo, até que, vendo O Rei dos Reis, de Nick Ray, descobriu que afinal Cristo também era judeu - em King of The Jews, statement sobre o anti-semitismo cristão. Esta é uma inscrição fulcral para entender o seu mais ousado projecto do autor, Human Remains, digamos que a "auto-apresentação" de cinco ditadores, Hitler, Mussolini, Estaline, Franco (que pede desculpa por parecer menor face aos comparsas) e Mao.
O mockumentary é subgénero escorregadio. Com found footage fizeram-se brilhantes falsos documentários que são de facto ficções; também sabemos como a inserção de "voz off" (no método Michael Moore, por exemplo) é um artifício demagógico, como se estivéssemos a ouvir com imagens documentais a "voz interior" das ficções. Rosenblaum faz isso em Human Remains. E, no entanto, é uma questionação. Não se trata apenas de todas as afirmações, políticas ou de vida privada, serem historicamente sustentadas. Trata-se de indagar se poderemos reconhecer como "humanos" tais "monstros", se neles, alguns representantes de um "mal absoluto", haveria também a quotidiana, familiar, sexual, "banalidade do mal"? Será possível retomar em cinema os termos de Hannah Arend?
Se os filmes também podem ser maquinismos de pensamento, Human Remains é um ensaio cinematográfico de excepção.

Winter Soldier - Este documentário suscitou uma situação bizarra no Indie. É um dos mais célebres filmes incluídos. Terá passado na "clandestinidade", que quase não vi referências? E digo "quase" porque li uma nota de Alexandre Borges na Atlântico de Abril, no mesmo número em que Luciano Amaral lançava o seu libelo mccarthista contra a Hollywood liberal! Mas então os conhecimentos de História andam tão por baixo que logo se foi esquecer do primeiro documentário antiguerra do Vietname, esse derrotismo da home front que tanto verbera?!Este é o famoso documentário feito por um anónimo colectivo em 1971/1972 (Barbara Kopple e outros), da winter soldier investigation organizada em Detroit pelos Vietnam Veterans Against The War depois do massacre de My Lai. Como David M. Halfbinger escreveu no New York Times quando o filme "reapareceu" no ano passado, "raramente um filme visto por tão poucos causou tanta consternação durante tanto anos". O mal-estar atingiu o rubro quando alguém que aparece apenas breves segundos no filme, John Kerry, foi candidato presidencial e contra ele outros veteranos fizeram um filme, Stolen Honor, indo buscar imagens deste.
A questão de fundo, todavia, foi a capacidade de ouvir o verbo imediato do testemunho, da difícil memória - e mesmo que o reaparecimento do filme tenha sido propiciado pelo crescente espectro de paralelos Vietname/Iraque e My Lai/Abu Ghraib, Winter Soldier é um formidável exemplo de "documento", de como o impacto de um testemunho pode ressurgir muitos anos depois. Crítico

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