"Portugueses vão ficar no limite dos recursos até para consumir o mínimo"

A directora-geral da Associação Portuguesa das Empresas de Distribuição (APED) diz que as condições de operação do sector se agravaram em 2012 e antevê mais dificuldades para o próximo ano.

Ana Isabel Trigo de Morais saiu do conselho de administração da Fundação Centro Cultural de Belém para a direcção-geral da Associação Portuguesa das Empresas da Distribuição e é, hoje, a porta-voz de um sector que vive a maior crise de sempre. As intensas promoções não são sustentáveis por muito mais tempo, avisa, criticando o agravamento dos impostos e a deterioração do ambiente económico. A directora-geral da APED, que representa 121 empresas com um volume de negócios de 15,7 mil milhões de euros, aponta o dedo às "ideias feitas" de que os retalhistas têm margens de lucro "brutais".


As grandes cadeias de retalho em Portugal estão a viver a maior crise de que há memória?

Sim, e temo que seja ainda mais verdade em 2013. Há uma quebra muito acentuada no rendimento das famílias, na confiança do consumidor e outros fenómenos que estão a pressionar ainda mais o consumo, como o desemprego e o aumento da carga fiscal. A subida sucessiva dos impostos, quer sobre o rendimento quer sobre o consumo (IVA), está a ter impactos como não há memória. A moderna distribuição tem apresentado um crescimento muito relevante nos últimos 15 a 20 anos e esta é a primeira vez que nos deparamos com consequências tão sérias e profundas.

Assistimos a mudanças radicais no comportamento do consumidor. Chegámos, agora, ao ponto de cortar nos gastos com bens mais básicos?

Sim. O consumidor poupa no essencial e compra orientado para a poupança. Está fidelizado a tudo o que são promoções, descontos, talões, feiras temáticas, ao "pague um, leve dois". Mas o seu comportamento muda muito rapidamente. Em 2011, estava a transferir o consumo fora de casa para dentro de casa, o que era interessante para a venda de refeições prontas, congelados ou take away. Agora temos nova mudança. Nos números do terceiro trimestre percebemos que o consumidor compra menos comida pronta e mais bens básicos para os transformar. Os perecíveis são a categoria que mais cresce. Procura-se obsessivamente o preço, e as marcas da distribuição fazem parte da vida das famílias, não só no alimentar como no não -alimentar, de bicicletas a roupa.

A cesta básica antes da crise é diferente da cesta básica de agora?

Não, o que se verifica é que dentro da mesma gama de produtos as pessoas estão a procurar os que têm menor preço e substituem. As poucas categorias que crescem são a mercearia, os enchidos e fumados. É um fenómeno de substituição que está a chegar a patamares que, para baixo, já não é possível descer.

Se já estamos a fazer substituições nesse nível, o que se segue?

Seguem-se sacrifícios ainda maiores para os portugueses. A proposta de valor que a distribuição constrói para o consumidor tem em linha de conta o rendimento das famílias e, à medida que esse rendimento baixa, a tendência é para conseguir ajustar. Mas isso tem um limite. Chega-se a um certo ponto em que o consumidor deixa de consumir. Isto leva-nos para outra questão, que marcou o ano, e que foi o aumento do IVA. O ano passado apresentámos um estudo ao Governo em que, desde logo, se percebia que o consumo dos produtos abrangidos ia cair porque a procura ia diminuir. Se em 2012 o consumidor teve pouca confiança e procurou o preço e a promoção, em 2013 vai chegar ao limite dos seus recursos até para consumir o mínimo. Há ainda o factor da inflação, ou seja, os bens aumentam de preço, as famílias têm menos dinheiro, não há ambiente de confiança.

Comprar roupa e livros tornou-se um luxo?

Qualquer dia é, de facto, um luxo. As famílias não conseguem ter recursos para comprar roupa, livros, entretenimento, jogos, consolas, bicicletas, frigoríficos, computadores... todas estas categorias estão em queda e vão continuar. Infelizmente para muita gente em Portugal, estes consumos, associados a um padrão médio do nível de vida, ficam em causa. Temos uma sobrecarga muito grande da classe média, que está a fazer o maior esforço fiscal.

Neste contexto, as relações entre a distribuição e os seus fornecedores estão ainda mais tensas?

É mais difícil para toda a gente. Este é um contexto em que todos os membros da cadeia sofrem, de forma diferente, as dificuldades. Num quadro de complexidade é natural que estas relações tenham de dar uma resposta ao mercado e que a procura dessa resposta seja difícil.

O Natal vai dar alguma folga às grandes superfícies?

Não são esses os indicadores que temos. Nunca como em 2012 vimos a actividade promocional começar logo em finais de Outubro e decorrer durante todo o mês de Novembro e Dezembro. É um sinal de que os operadores estão a tentar antecipar a quebra no consumo e a segurar os seus objectivos de vendas, e do ano.

A estratégia para tentar segurar as vendas baseou-se em promoções?

O que caracterizou este ano, e vai continuar a marcar 2013, é esta intensa actividade promocional e de desconto. Mas é preciso que se diga que isto tem um limite. Há toda uma questão de margem e custo dos bens que chega a um certo ponto em que não é possível acomodar mais. São limites que só cada um dos operadores saberá definir.

A nova regulamentação aprovada pelo Governo, e que saiu da Plataforma de Acompanhamento das Relações na Cadeia Agro-Alimentar (PARCA), vai afectar esta estratégia de descontos?

Estamos a assistir a um agravamento objectivo das condições de operação das empresas da moderna distribuição e que resulta de várias iniciativas. Todos os custos de contexto aumentaram significativamente em Portugal. Temos elevados custos de energia, de combustíveis e taxas, e um ambiente fiscal cada vez mais pesado.

Quanto é que aumentaram os custos de contexto?

Estamos a preparar um estudo para perceber como estamos a evoluir nesta matéria. O clima de negócio não simplifica e não atrai investimento estrangeiro para Portugal. Sobre a PARCA, lembro que tinha como objectivo promover uma cultura de transparência e diálogo. Sabemos que os problemas [ao nível da produção] têm muito que ver com o perfil da oferta do sector primário e quase nada que ver com a indústria de grande consumo. As relações com a agricultura merecem um tratamento diferente e especial e foi com esse espírito que estivemos na PARCA.

Está a dizer que a indústria de bens de consumo não merece a mesma atenção?

Não é a mesma coisa falar numa relação entre fornecedor e comprador quando o fornecedor é uma grande multinacional. Não é uma pequena empresa ou produtor. Um dos objectivos da PARCA era construir relações mais transparentes e perceber onde se cria valor. Infelizmente, o balanço que a APED faz desse trabalho não é muito positivo.

Refere-se ao observatório de preços dos produtos...

Sim. Não sinto que as relações na cadeia de valor estejam mais transparentes, nem que se saiba melhor como se distribui o valor. Esperamos que o Governo consiga criar instrumentos que permitam perceber quem é que fica com o valor. Isso permitiria acabar com muitas ideias feitas segundo as quais a grande distribuição tem margens de lucro brutais.

Os descontos são ou não feitos à custa da redução de margem dos fornecedores?

Cada um dos associados tem o seu modelo de negócio. Há milhares de formatos para se celebrarem acordos [entre fornecedores e retalhistas]. Há promoções que são feitas por iniciativa do fornecedor, outras por iniciativa do distribuidor. Não nos revemos nessa afirmação que é excessivamente simplificadora de uma realidade complexa. Os descontos que a distribuição consegue repassar para o consumidor são construídos na proposta de valor que ele desenha com o seu fornecedor. É sempre neste diálogo. E haverá situações em que um sacrifica margem, e outro também sacrifica margem.

A APED vai tentar travar a lei sobre as práticas restritivas de comércio e o novo diploma que alterou os prazos de pagamento a fornecedores?

Este último diploma que refere vai alterar os prazos de pagamento para todos os bens alimentares em Portugal que passam a ser de 30 dias desde que comprados a pequenos fornecedores. Apoiamos essa medida, mas há impacto nas tesourarias das empresas. Diz-se que a grande distribuição, ao vender o produto, fica logo com o dinheiro e pode pagar no dia seguinte ao fornecedor. Mas quem paga o pessoal, a electricidade, as infra-estruturas?

Significa que se financiam nos fornecedores?

Não. O sector tem grande investimento no seu parque de lojas e na sua cadeia de abastecimento. Um dos nossos associados fez contas internamente e concluiu que o impacto da redução dos prazos de pagamento era na ordem dos 200 milhões de euros por ano. Se em causa estivesse apenas esta medida, diria que era um esforço que o sector faria. Mas não é a única alteração. É mais uma que vem trazer dificuldades acrescidas.

A APED também já criticou o diploma relativo às práticas restritivas do comércio, que aumenta o valor máximo das multas de 30 mil euros para 2,5 milhões.

Concordamos que o diploma precisava de uma revisão, mas não é nestes momentos mais críticos que se alteram leis estruturantes para a organização de um sector. Passamos de um regime ultrapassado e desajustado, com valores baixos, para um de 2,5 milhões de euros, que é muito dinheiro em qualquer parte do mundo. Foi-se longe de mais.

Mas vão pressionar para alterações nesses diplomas?

Queremos acreditar que serão introduzidos melhoramentos para não que haja interferências na liberdade contratual entre distribuidores e fornecedores. Lamentamos que em Portugal haja uma espécie de miopia na análise destas questões. Não sei se, devido a uma técnica de redacção jurídica, se percebeu as alterações introduzidas. Há aspectos que tornam as coisas mais claras, mas outros que vão afectar a dinâmica promocional.

À luz da nova lei, a promoção do 1.º de Maio do Pingo Doce não seria possível?

O que está em causa são descontos em cartão, talão, feiras temáticas, em que o consumidor compra hoje e tem direito a um desconto numa compra futura. Mas aguardamos com cautela pelas versões finais.

O Governo também criou uma nova taxa de segurança alimentar. Os associados da APED vão pagá-la?

É outro factor que agrava as condições de operação da distribuição. Somos contra e consideramos que é discriminatória. Não se consegue perceber porque é que só os operadores de média e grande dimensão têm obrigação de pagar e há um universo de comerciantes isentos.

Mas vão travar a medida por via jurídica?

Cada um dos associados está a desenvolver os seus meios de defesa sobre a aplicação desta medida, que é mais um imposto a incidir sobre o sector. Além disso, a necessidade dessa taxa está por clarificar.

De um lado a quebra de consumo, do outro o aumento da carga fiscal. O sector está a ser comprimido por dois lados, a crise e as medidas do Governo?

Estamos a viver um momento de compressão. Toda a cadeia de valor está em tensão e nos últimos tempos as dificuldades agravaram-se.

O peso do sector no PIB vai diminuir?

O ano passado, o sector agregado dos associados da APED valia 9% do PIB, este ano vamos ver. Vai diminuir quer por perda do volume de vendas quer pela contracção do PIB. No universo da APED há empresas que têm operação à escala global e vemos que, quer para as nacionais quer para as estrangeiras, é preciso remunerar os investidores. As circunstâncias de operação são difíceis.

O próximo ano não traz boas perspectivas...

As grandes preocupações são a quebra de consumo, que se vai acentuar, a perda de mais emprego, e também tememos que haja operadores a abandonar o mercado português, por falta de rentabilidade. O mercado está a encolher. São ameaças.

A saída de cadeias de retalho estrangeiras já está a acontecer?

Há operadores de grande escala que estão a redimensionar e a olhar para toda a operação. Antevemos sérias dificuldades no próximo ano.

Até ao primeiro semestre, o sector eliminou seis mil postos de trabalho. Há mais dificuldades no diálogo com os sindicatos?

Para os associados da APED, o diálogo social é muito importante. No entanto, este contexto exige uma postura e um posicionamento diferentes. Gostávamos que os sindicatos se sentassem à mesa e não discutissem quase exclusivamente aumentos de salários e contrapartidas. Os desafios que o sector e Portugal têm pela frente exigem a todos uma postura que tem de ir além da negociação dos aumentos anuais, do percentual das categorias, da tabela A ou B. São temas importantes, mas a APED gostava de ter um diálogo social que fosse além das questões financeiras.

Outro tema que marcou o ano foi o das comissões pelo uso de cartões bancários, nomeadamente os cartões diferidos. Como avalia a postura do Banco de Portugal (BdP) neste caso?

Sabemos que o BdP está mais vigilante e desperto para este problema. Acreditamos que, a prazo, vai haver alterações no funcionamento do mercado, sobretudo no espaço europeu. Queremos taxas mais baratas e precisamos de saber exactamente o que temos na mão quando seguramos um cartão. Se é débito, crédito ou débito diferido. Foi nestes últimos cartões que o BdP actuou. Houve taxas cobradas aos comerciantes que talvez não devessem ter sido cobradas.

Tem valores?

Depois de o BdP ter actuado, entre três ou quatro associados da APED um dos bancos passou de um peso de 97% das comissões cobradas pelo uso de cartões de crédito para 8% a 12%. É disto que estamos a falar. É preciso fazer mais e a expectativa é que o BdP torne o mercado mais transparente.

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