A ideologia da avaliação

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A euforia instalada nas escolas e na administração pública a respeito da avaliação de desempenho, desde a sua origem, veio acompanhada por uma obscura fundamentação onde impera a incomparabilidade entre trabalhar e produzir, e a partir da qual o círculo da desconfiança se fechou em torno do trabalhador (para não usar o termo depreciativo funcionário). As ramificações deste propósito foram-se estendendo aos mais variados aspectos da actividade profissional, a ponto de os gestos, as atitudes, os comportamentos e as posições serem sujeitas a cálculos e transformadas em qualquer coisa sólida, domesticada.

Há uns anos, tive a desígnio de proceder a um paralelo com palavras citadas (que aqui adaptei) por João Lobo Antunes. Hoje concretizo-o: "Quando éramos novos era tão diferente, havia na educação outra imaginação, outra criatividade. Agora tudo isto vai sendo sufocado por "evidências", "guidelines" e normas. A educação era então uma área mais livre, com um saboroso componente de interpretação, e isso era o que em grande parte nos distinguia. Se era olho ou faro - e a escolha dos sentidos é arbitrária -, a verdade é que ambos significavam estratégias cognitivas que tinham um sólido fundamento epistémico".

Vem isto a propósito da síntese perfeita da falácia avaliativa que António Guerreiro publicou na revista Atual do Expresso (11 de Agosto). Diz Guerreiro: "Para os epistemólogos, a avaliação é um gesto metodológico sofisticado, que releva de uma ciência. Mas a avaliação como prática do aparelho - como aquela a que todos os trabalhadores e instituições estão hoje submetidos - é outra coisa: uma ideologia poderosa e um mecanismo puramente gestionário. [...] Mas o erro maior está no cerne da ideologia da avaliação, que tudo reduz ao mensurável. Medindo, calculando, numerando e comparando, os avaliadores imaginam-se a fazer um trabalho científico. Tão científico que nenhuma décima escapa à medição apuradíssima. Os avaliadores são uma seita e a sua mística é a ordem quantitativa pela qual tudo acede a um estado estatístico e entra num ranking. Mas como sabem que o seu trabalho não é interno a um saber, eles precisam que os avaliados (que, por sua vez, são os avaliadores de outros) lhes outorguem legitimidade, que a creditação seja ao mesmo tempo coerciva e consentida". Vale a pena ler o artigo na totalidade.

O que mais me aflige já não é o modo como os processos de avaliação criam os seus métodos e os estendem a toda a manifestação humana, mas o modo como eles são aceites placidamente, à margem de contestação, protesto ou discussão. Na minha percepção - naturalmente subjectiva -, na ausência de uma contabilidade rigorosa de elementos, os profissionais debatem-se com um campo de vulnerabilidade que gera desconforto, quando se inscreve "numa moral liberta de obsessões tecnológicas e burocráticas". Já não sabemos viver sem avaliação. Perdemos a capacidade da imprevisibilidade, da elasticidade mental, do convívio com a margem de erro, da intimidade da dor, da propensão para a abstracção, da espontaneidade. De uma certa forma de humanidade.

É perfeitamente compreensível que a avaliação, na área do ensino, faça parte da própria linguagem profissional. O que não é natural é ela tornar-se a sua linguagem exclusiva. E os tempos que se avizinham alertam para esse perigo - o de (pensemos até nos alunos) julgar sem primeiro compreender. Não sei se se pretende que a escola seja uma espécie de Jogos Olímpicos do saber, com a sua componente meritocrática, medalhas, diplomas, quadros de honra, pódio. O que é certo é que um olhar estritamente racional tende a roubar-nos certos ângulos de visão e a criar a ilusão de que a avaliação é infalível. O Acordo Ortográfico de 1990, por exemplo, é uma das mais recentes provas de que o rigor e a argumentação científica não são necessariamente faces da mesma moeda. E, contudo, move-se.

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