Hoje é Carnaval

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Não quero ser chato, há pessoas mais qualificadas para isto. Mas sou obrigado a raciocinar sobre o Carnaval. Se um ser pensante deseja ardentemente a sustentabilidade, tem de reflectir sobre todos os momentos da sua existência, incluindo celebrações pagãs, nas quais a pele e o desgoverno felizmente prevalecem sobre a moderação e o intelecto. E é precisamente no carácter epidérmico das festas carnavalescas que vejo matéria-prima para meditação.

Como todos sabemos, com maior ou menor deleite, os desfiles são usualmente palco de uma certa aproximação humana à forma como somos postos no mundo. A roupa é, em grande medida, um item dispensável, libertando a anatomia dos constrangimentos físicos do vestuário.

Digo em certa medida porque, na verdade, também anda muita gente por aí sobrevestida nos carnavais. Basta olhar para as alas das escolas de samba, cada qual com centenas de pessoas com o mesmo figurino. Tudo começou com a das baianas, que, segundo fontes próximas do sambódromo, apareceu por volta dos anos 1930. Não conheço imagens da época, mas imagino as senhoras vestidas tal como as homenageadas - as baianas de saia rodada branca e tabuleiro na cabeça, a venderem, nas ruas de Salvador, quitutes carregados de malagueta, com efeitos escaldantes ao longo do tubo digestivo.

Desde então, proliferaram alas para todos os gostos e motivos - dos artistas às borboletas, das crianças aos passistas, dos deuses aos apaixonados. O que quase todas têm em comum é o excesso de indumentária dos seus participantes, em notório contraste com o clima da sua terra original. Uma jornalista desta casa vai este ano desfilar no Rio de Janeiro numa ala do clero, paramentada de sumo-pontífice dos pés à cabeça, para desespero das suas glândulas sudoríparas. Sugiro que reconsidere e procure a ala das índias, que andam mais fresquinhas.

Sou obrigado a concluir - já que é mesmo para chatear - que as deslumbrantes fantasias têm o seu ónus ambiental. Com o peso da farda, o calor infernal e o movimento perpétuo, o Carnaval brasileiro obriga a um consumo adicional de cerveja gelada e ar condicionado.

Aqui, do outro lado do Atlântico, ocorre o inverso. Reproduzindo costumes tropicais, corajosas participantes dos corsos desafiam o Inverno com avultada exposição corpórea - num acto de singular bravura meteorológica. De certeza que, no mínimo, têm de tomar um chocolate quente depois, para recuperar da hipotermia - tal como a assistência, que comparece ao desfile já pensando no galão e na torrada que a esperam no café da esquina, mal termine o espectáculo, para libertar os músculos petrificados. E lá se vão mais alguns centímetros cúbicos de gás natural, mais a electricidade do radiador, mais a gasolina do automóvel para pôr o aquecimento em marcha.

Não sei porquê, mas desconfio que esta linha de raciocínio não está a convencer ninguém. Na verdade, nem a mim próprio. Esperar que a moda carnavalesca se adeque às condições climatológicas locais seria o primeiro passo para introduzir o tédio na folia. Já não basta a cândida expectativa governamental de que as pessoas trabalhem na terça-feira do Entrudo - ao que, aparentemente, largos sectores da sociedade estão a responder com um legítimo manguito. Senhores do poder, por favor, respeitem ao menos o direito à pândega.

Aliás, chega de reflexões sobre a festa. Quem gostar que se divirta como quiser. Por enquanto ainda estamos em democracia. E, se tudo o que eu até agora disse for classificável como estapafúrdio disparate, não me levem a mal, hoje é Carnaval.

Jornalista

rgarcia@publico.pt

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