Coabitação abre com primeiro veto de Cavaco a lei do Governo

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Cavaco alega que decreto-lei traria "insegurança" aos doentes para justificar veto NUNO FERREIRA SANTOS

Executivo dá sinais de que não vai ceder. Cerca de 70 por cento das prescrições já são feitas em receitas de base electrónica

O decreto-lei do Governo que prevê o reforço da obrigatoriedade de prescrição de medicamentos por substância activa em vez de marca, uma medida que pretende incentivar o mercado de genéricos, foi vetado pelo Presidente da República, alegando que traria "insegurança" aos doentes. Cavaco Silva prometeu um segundo mandato "actuante" na noite da vitória nas presidenciais, ontem começou a "actuar" e com estrondo. A favor do veto estão a Ordem dos Médicos e a indústria farmacêutica.

Pela primeira vez desde 2006, o Presidente vetou e devolveu uma lei do Governo de José Sócrates. Antes, só vetara leis do Parlamento e foram 14, a última das quais durante a pré-campanha eleitoral. É o começo de um mandato de coabitação, depois dos tempos de "cooperação estratégica", no primeiro mandato, em que os contactos informais entre São Bento e Belém permitiam ultrapassar divergências e evitar o veto das leis.

O Governo não tardou a dar a resposta. João Tiago Silveira (foto em baixo), secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, lamentou a decisão, registou o facto de Cavaco ter optado pelo veto e prometeu manter uma "cooperação leal" com Cavaco Silva. Sendo este um veto absoluto - ou desiste ou acata total ou parcialmente as dúvidas do Presidente -, o Governo deu sinais que quer manter esta reforma. A resposta de Tiago Silveira é sinuosa. O executivo "continuará a trabalhar para realizar reformas, para não parar e avançar na protecção dos cidadãos - o que é especialmente importante na actual conjuntura".

O Governo aprovou a 15 de Dezembro um decreto-lei que reforça a obrigatoriedade da prescrição por denominação comum internacional (DCI), que vem sido defendida por sucessivos governos há cerca de 20 anos, lembra o actual bastonário da Ordem dos Farmacêuticos (OF), Carlos Maurício Barbosa, e por diversos partidos. Com variações, vários grupos parlamentares advogam a medida e há mesmo dois projectos de lei sobre o tema, um do PP e outro do PSD, que foram aprovados no Parlamento e vão ser debatidos na especialidade. A existência destas iniciativas foi também usada como argumento para vetar a lei, alegando o Presidente que quer evitar "instabilidade legislativa" em área "de tão grande sensibilidade".

Mas o grande argumento de Cavaco foi mesmo a ideia de que a prescrição por DCI poderia trazer "insegurança" aos doentes, ao permitir a substituição da decisão do médico pela do farmacêutico. O bastonário dos farmacêuticos pediu uma audiência com carácter de urgência ao Presidente, para lhe explicar que "não há motivos para temer reflexos negativos para a saúde dos doentes. Os farmacêuticos estão preparadíssimos para assegurar [a substituição] e assumir a responsabilidade".

Após o veto, a Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (Apifarma) e a Ordem dos Médicos reafirmaram-se contra a prescrição por nome genérico. A Apifarma disse, em comunicado, que representa "riscos para a adesão à terapêutica". O recém-eleito bastonário da Ordem dos Médicos, José Manuel Silva, aplaudiu o veto e tem feito da oposição à medida a sua grande bandeira, por entender estar em causa "a defesa da qualidade da medicina e dos doentes", cita a agência Lusa.

O deputado bloquista João Semedo discorda da posição da OM. "Receia-se que o interesse comercial do farmacêutico possa condicionar a decisão do doente? Há muitas formas de contrariar possíveis tentativas de conduzir o doente a comprar o mais caro ou o que dá mais lucro à farmácia", diz à Lusa.

O Governo previa que a prescrição electrónica entrasse em vigor com carácter obrigatório a partir de Março e que, caso não fosse praticada pelo médico, implicaria mesmo a não comparticipação dos fármacos, e este foi outro dos motivos de veto de Cavaco.

A Ordem dos Médicos já tinha dito que o timing do Governo era "impraticável". A deputada popular Teresa Caeiro concorda que não foi feita "a operacionalização da medida" e que, se entrasse em vigor na data prevista, criaria "injustiças" em situações em que um médico não tem um computador por perto, caso, por exemplo, de visitas domiciliárias. O secretário de Estado da Saúde, Manuel Pizarro, explicava ontem que "já hoje mais de 70 por cento das comparticipações são feitas em receitas de base electrónica". com A.C.

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