Eles e nósA guerra civil de Espanha vista atrás da câmara

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Soldados de Franco numa trincheira com Madrid ao fundo La Guerra de España 1936-1939, el país (agência keystone-nemes)

Dezenas de documentários fazem a apologia da revolução ou da cruzada. É propaganda em estado puro, mas também um retrato da tremenda energia libertada pelo conflito que abalou a Península Ibérica no século passado. A Guerra Filmada passa hoje e amanhã no Estoril Film Festival

No Outono de 1936, a maior parte dos caminhos de Espanha vai dar a Madrid. É para aí que se dirigem as forças franquistas da frente ocidental depois da junção, na Estremadura, dos dois exércitos nacionalistas provenientes de Salamanca e de Sevilha. Para trás ficam as ruínas de Badajoz, conquistada em Agosto pelas tropas coloniais do coronel Juan Yagüe, e um saldo de dois mil mortos, muitos deles civis.

Começa, então, a progressão do exército franquista em direcção a Toledo e Madrid através do vale do Tejo. É esse o caminho que segue uma equipa de reportagem franquista de Salamanca, acompanhando o avanço das tropas insurrectas. O documentário que produziu, Madrid, Cerco y Bombardeamiento da la Capital de España, é um dos filmes que compõem a mega-série de quase oito horas La Guerra Filmada (A Guerra Filmada), que será projectada hoje e amanhã no Estoril Film Festival. Na sua viagem em direcção à capital, os autores do filme desviam-se para norte, seguindo por Ávila, El Escorial e, finalmente, pelos arredores de Madrid, onde se travarão duros combates em Novembro de 1936.

A dada altura do percurso, a câmara detém-se num combatente falangista que veste uma camisola com a palavra "Portugal" estampada. Mais adiante, é filmada uma pequena bandeira portuguesa hasteada numa trincheira em Cerro de los Ángeles, acabado de conquistar. A responsabilidade do acto é atribuída a um legionário. "É provável que o legionário referido no documentário fosse português", admite Manuel Loff, professor de História Contemporânea na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e autor de uma obra de referência sobre a natureza das duas ditaduras ibéricas (O Nosso Século é Fascista!, Campo das Letras, 2008). O historiador César Oliveira estimou que cerca de oito mil portugueses, alguns deles militares de carreira, tenham participado como voluntários ao lado de Franco, enquadrados na Legião Espanhola. No lado republicano também há portugueses, maioritariamente recrutados entre os emigrantes, mas em muito menor número - à volta de 1200, calcula Manuel Loff.

As duas referências ao envolvimento português na guerra são casos isolados. Todavia, a presença portuguesa ao lado de Franco é decisiva para o desenlace vitorioso do "alzamiento" militar. "A historiografia espanhola não lhe dá grande relevância", diz Manuel Loff. "Mas a intervenção ao lado dos franquistas é totalmente despudorada. Salazar diz logo em 1936 que o que se está a passar em Espanha é uma guerra de civilização, que é como quem diz, uma guerra ideológica. É interpretada pelo salazarismo e pela grande coligação social e política que o apoia como sendo essencial para a consolidação e manutenção do regime português. Por isso, há desde o princípio uma fortíssima mobilização, não só do regime, mas também da classe dominante, da oligarquia portuguesa e dos sectores mais ricos, que o regime se encarrega de articular."Reconstrução do passado

A exibição de A Guerra Filmada pela TVE em 2006, coincidindo com o 70.º aniversário do início da guerra civil, foi um acontecimento relevante. Pela primeira vez eram reunidos numa série documental, em oito capítulos (A República em Guerra; A Espanha Heróica; A Revolução Social; A Defesa de Madrid; Campos de Batalha e Políticas de Retaguarda; Uma Guerra Internacional; Resistir, Vencer: Até ao final da guerra; e A Vitória), registos inéditos do conflito realizados pelos dois lados. A produção foi da responsabilidade da televisão pública espanhola e da Filmoteca de Espanha e as introduções aos capítulos foram assinadas por Julián Casanova, professor de História Contemporânea da Universidade de Saragoça e um dos mais importantes estudiosos da repressão franquista.

Na apresentação da obra no Ciné Doré de Madrid, sede da Cinemateca Espanhola, em Julho de 2006, Julián Casanova referiu-se ao valor dos documentários como espelho da realidade histórica, constituindo elementos fundamentais para a reconstrução do passado recente. O equilíbrio entre a presença de testemunhos franquistas e republicanos foi uma preocupação essencial: "Respeitámos a voz off e a montagem de época. A única coisa que se acrescentou foram as minhas introduções a cada capítulo e um comentário final sobre o objectivo da série."

As seis dezenas de filmes da série, feitas pelo Governo republicano, pela junta franquista de Burgos-Salamanca, por entidades regionais ou por instituições internacionais são, invariavelmente, obras de propaganda. "Não era possível fazer outra coisa", diz o historiador Manuel Loff. "A propaganda ideológica tem um peso muito forte durante este período e nalguns casos é surpreendente. Um dos documentários, produzido por anarquistas catalães em 1936, é sobre Barcelona. Inclui reportagens que eu só imaginaria que podiam ser utilizadas do lado franquista. Há imagens das igrejas e conventos destruídos, traduzindo a revolta profunda do anticlericalismo popular espanhol que leva não só à dessacralização das igrejas, à sua reconversão para outros fins e à retirada dos símbolos religiosos, mas à exumação e exposição pública de cadáveres. Estes são descritos no filme nestes termos: "Eis aqui os corpos destas freiras retorcidos pela tortura interior e intrínseca do catolicismo!" É uma coisa surpreendente que também nos revela - e este é um aspecto muito importante - o fosso profundíssimo que se tinha criado entre o catolicismo hierárquico e eclesial e o mundo popular, quer rural, quer urbano, sobretudo na franja mediterrânica de Espanha."

Genocídio ideológico

A preocupação quase obsessiva dos espanhóis com a objectividade e equidistância face ao que se passou entre 1936 e 1939 pode parecer um pouco estranha aos estrangeiros. A guerra civil acabou há 70 anos, mas as feridas que ela deixou na sociedade espanhola só aparentemente estão fechadas. Os elementos fracturantes continuam presentes e, ciclicamente, irrompem com uma inesperada veemência. Porquê?

"Em 1945, as sociedades que sofreram a ocupação nazi-fascista durante a Segunda Guerra Mundial libertaram-se e fizeram o trabalho do luto e da memória, da revisão do que tinha sido esse passado recente. No caso espanhol isso só pode ser feito a partir de 1977, com a transição para a democracia", responde Manuel Loff.

Os números do conflito não deixam dúvidas. Calcula-se que tenham morrido 300 mil pessoas na frente de combate. Do lado franquista foram fuzilados, na retaguarda, entre 120 mil e 150 mil pessoas, e entre 50 mil e 60 mil do lado republicano. No final da guerra, fogem do país mais de 400 mil pessoas, enquanto dentro de Espanha há meio milhão de pessoas encerradas em campos de concentração - cerca de 50 mil serão fuziladas até 1945.

"Neste sentido, pode dizer-se que a guerra de Espanha foi um quase genocídio de natureza ideológica. Ou seja, tentou eliminar-se a esquerda inteira, desde os sectores historicamente herdeiros das revoluções liberais, republicanos e laicos, até socialistas, comunistas e anarquistas. Todas estas correntes foram decapitadas numa geração", explica Loff.

O país viveu uma transição para a democracia, mas não fez uma revolução, lembra o historiador português: "Nessa altura, a direita neofranquista, os partidos socialistas, os comunistas, os nacionalistas catalães e bascos aceitaram pragmaticamente pôr uma pedra sobre o passado. Não há uma única referência ao assunto na Constituição e a lei da amnistia veio cobrir todos os crimes políticos praticados desde 1936. Isso teve um peso brutal, pois não foi possível fazer a homenagem às 120 mil vítimas do franquismo que estão perdidas na geografia espanhola, enterradas em qualquer sítio que não é sequer um cemitério."

A Lei da Memória Histórica, aprovada pelo anterior Governo socialista de Zapatero, procura reparar as coisas, mas a verdade é que continua a existir uma grande tensão em torno da história recente. "No Verão de 2006, recorda Loff, eu estava em Espanha e assisti a uma espécie de desenterrar do passado. Várias famílias de republicanos desaparecidos durante a guerra civil começaram a pagar anúncios necrológicos na imprensa progressista e liberal sobre o desaparecimento dos seus parentes. A resposta da direita foi a publicação de anúncios análogos na imprensa conservadora."

Espanha procura hoje muitos dos que vimos combater e morrer n"A Guerra Filmada, muitos dos que vimos desalojados e desprotegidos, alegres ou vencidos. E vai continuar a procurar.

A Guerra Filmada

Realização de Trinidad AguirreCentro de Congressos (Estoril)Hoje (1.ª parte)Entre as 14h30 e as 19h00?(repete-se a 9 de Novembro, 15h00 às 19h00)Amanhã (2.ª parte)Entre as 15h30 e as 19h00?(repete-se a 10 de Novembro, 15h00 às 19h00)Quarta, 11Debate sobre a série, às 15h00

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