O martírio de Gisberta e os clones de Alex

Quando alunos de uma escola católica martirizam alguém por simples "divertimento" a ponto de lhe provocar a morte, é preciso ir mais fundo: que educação tiveram? O que lhes caucionou o crime?

Num magistral filme de Stanley Kubrick, Laranja Mecânica, um grupo de jovens chefiado por Alex "diverte-se" a espancar mendigos e a violar mulheres. Proibido pela censura em Portugal até ao 25 de Abril e polémico em diversos países pela sua crueza, Laranja Mecânica explora os limites da violência, envolvendo o espectador numa teia de onde dificilmente sai incólume. Também dificilmente saíremos incólumes desse simulacro de Laranja Mecânica à portuguesa que é o "caso Gisberta". Um grupo de jovens alunos de uma escola católica do Porto tinha por "divertimento" espancar uma transexual, levando esse "hábito" até ao clímax da morte. Talvez não premeditada, mas consequência óbvia de um martírio premeditadíssimo. Nas declarações prestadas por estes dias no Tribunal de Menores do Porto, todos os inquiridos confirmaram que "agredir Gisberta era apenas um passatempo, uma brincadeira que repetiam frequentemente". Violaram-na por "curiosidade". E lançaram-na a um poço com mais de 15 metros de profundidade num daqueles momentos em que as acções em grupo passam da "brincadeira" ao crime cego.Durante todo o tempo que antecedeu o cruel desfecho desta triste história, ninguém deu pelo abominável "passatempo" destes jovens? Ou ninguém quis saber, talvez porque Gisberta era apenas um daqueles seres que a sociedade usa e despreza com o mesmo ímpeto, sem lhes dar estatuto humano? Para os jovens agressores, Gisberta era um objecto de tortura idêntico às moscas a quem miúdos arrancam as asas, pisando-as de seguida, ou aos lagartos a quem arrancam o rabo, esmagando-os depois à pedrada. Estes casos de crueldade infantil existem há séculos e, infelizmente, são muitas vezes tolerados pelos adultos como "divertimentos" inocentes. Gisberta juntou-se, por fatalidade do destino, ao rol das muitas vítimas anónimas desta suposta inocência juvenil. Nas mãos dos seus jovens carrascos foi objecto de mórbida curiosidade e tratada como um animal indefeso. Por várias vezes, por "divertimento". Que valores serão transmitidos a estes jovens na escola católica que frequentam? Os mesmos que levaram o padre responsável pela instituição a gritar aos jornalistas, exaltado, "se fossem vossos filhos, não faziam isto"? Isto o quê? Procurar as razões para um crime inqualificável? O padre deveria ser o primeiro a procurá-las. Talvez na instituição que dirige. Talvez em si próprio e na forma, pelos vistos pouco eficaz, como transmite os valores católicos de respeito e amor pelo próximo, seja o vizinho do lado ou Gisberta.
Mas, pelos vistos, algo anda podre nalguns meios onde deveria impor-se uma moral mais saudável e humana. Há umas semanas, na Casa do Gaiato de Setúbal, um padre negava a existência de maus tratos a crianças naquela instituição, ao mesmo tempo que não se coibia de esbofetear um miúdo de cinco anos à frente do jornalista da Lusa que o interrogava. Quem com ferro mata com ferro morre, diz o ditado. Mas também quem é maltratado tende a maltratar ou matar, ensina a experiência. Não se sabe o que ensinará, agora, o martírio de Gisberta. Mas é urgente uma resposta. E medidas para evitar que tais casos se acomodem no lodo da nossa indiferença.

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