Ascensão e queda da meritocracia

eritocracia: a palavra só pode soar bem. Significa governo dos que têm mérito. Esse mérito é entendido normalmente como realização académica, uma combinação de talento com trabalho, que costuma ser medida por graus académicos ordenados por mérito: A,B,C,D ou primeiro, segundo terceiro.Quem não desejaria viver numa meritocracia? É certamente preferível a uma plutocracia, na qual a riqueza determina o status, ou uma gerontocracia, na qual a idade conduz ao topo, ou mesmo numa aristocracia, na qual o que conta são títulos herdados e as propriedades. A meritocracia parece, pois, preferível, pelo menos à primeira vista. Mas, depois de uma observação mais atenta, as coisas deixam de ser tão simples.
Para muita gente, a França é desde há muito o epítome da meritocracia. Muitos dos que ocupam os lugares cimeiros, não apenas na administração pública e na justiça, mas também na política, nos negócios e na academia, são formados nas famosas grandes écoles. Muitos passaram pelo treino rigoroso que conduz ao cargo de inspecteur de finance, altos funcionários públicos.
E, no entanto, as elites francesas são hoje olhadas com uma desconfiança cada vez maior, ao ponto de chegarem a ser vilipendiadas pelo menos por parte da população. Os líderes franceses não são obviamente imunes à corrupção. A complexa relação entre política e dinheiro deu azo a vários escândalos mediáticos nos últimos anos. Deixou de ser evidente que os altamente educados líderes franceses estejam melhor preparados para dirigir o país melhor do que os outros.
A burocracia japonesa meritocraticamente seleccionada enfrenta também o mesmo tipo de opróbio. A própria bucrocracia é cada vez mais apontada como a responsável pela rigidez e estagnação económica do país.
No Reino Unido, um governo a caminho do seu terceiro mandato afirmou repetidamente que queria fazer do país uma "meritocracia". O chanceler Gordon Brown, o provável herdeiro de Tony Blair, é particularmente sensível a este objectivo. Deve-se, no entanto, a um cientista social britânico (e membro do Labour), Michael Young, um livro muito polémico, chamado precisamente A Ascensão da Meritocracia. Esse livro, que escreveu há 40 anos, não era propriamente uma descrição do caminho para a terra prometida. Mas uma inesperada visão de dimensões quase orwellianas.
Duas das questões mais importantes que Young suscitou continuam actuais. Primeiro, se a realização académica é o bilhete de acesso para o poder e o status, o que se passa com os outros? O que se passa com os que não foram para a universidade? Como é que os outros 50 por cento se comportam num mundo meritocrático?
Estão, diz Young, confinados ou mesmo condenados a empregos de baixo nível, sem qualquer oportunidade de atingir a celebridade ou até uma simples posição de responsabilidade. De acordo com Young, aqueles que ainda têm algum talento formarão um "corpo pioneiro" de canalizadores e carpinteiros e outros trabalhadores especializados. Aqueles que nem sequer consigam atingir este nível, estarão condenados a um "corpo doméstico" de trabalhadores não especializados.
O quadro negro traçado por Young tem uma estranha semelhança com o mundo de hoje. A nova "subclasse" é o outro lado da elite meritocrática. Os imigrantes, em particular, não gozam da igualdade de oportunidades que a palavra "mérito" sugere.
Hoje, a meritocracia parece ser apenas uma outra versão da desigualdade que caracteriza todas as sociedades. E pode ser uma forma particularmente cruel de desigualdade, na medida em que os que não tiverem sucesso nem sequer podem dizer que foi por falta de sorte ou porque os de cima não os deixaram. Pelo contrário, são obrigados a concluir que falharam e que nenhuma espécie de esforços os pode salvar.
É ainda necessário acrescentar um outro aspecto que Young descreveu: a meritocracia significa apenas que um outro grupo de elite fecha as portas atrás de si logo que tenha alcançado o seu status. Os que o lá chegaram por "mérito" passam a quer ter tudo o resto - não apenas poder e dinheiro, mas também a oportunidade de decidir quem entra e quem fica de fora.
Mais tarde ou mais cedo, argumenta Young, as elites meritocráticas deixam de ser abertas; querem apenas garantir que os seus filhos tenham uma sorte melhor do que a do "corpo pioneiro" ou "o corpo doméstico". Tal como todas as elites antes deles, instalam-se o melhor possível e utilizam todos os meios disponíveis para manter as coisas como estão.
Não é preciso seguir os argumentos de Young até ao fim: a uma eventual revolução. Mas é preciso saber manter um cepticismo saudável em relação às virtudes da meritocracia assente apenas na realização académica. Uma sociedade assim não é a resposta às nossas preces por justiça e decência ou até por simples decisões sensatas.
É muito melhor lembrar que, quando se trata de liderança, estão envolvidas muitas outras qualidades para além do grau académico. No que toca às instituições, não devemos permitir que qualquer critério único determine quem chega ao cimo e quem não chega. A diversidade é melhor garantia de abertura do que o mérito, e a abertura é a verdadeira marca de uma ordem liberal.

Sociólogo britânico, autor de uma vasta obra, membro da Câmara dos Lordes e antigo director da London School of Economics e do St Antony"s College de Oxford.

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