A "justiça" dos vencedores

Os Estados Unidos anunciaram a sua intenção de submeter a julgamento os responsáveis do regime iraquiano de Saddam Hussein pelos crimes de que são acusados. Mas a iniciativa pode redundar num simples arremedo de justiça para vindicta dos vencedores. Segundo as notícias, o julgamento caberia a tribunais americanos, provavelmente mesmo nos Estados Unidos, ou a tribunais "ad hoc" instalados pelos ocupantes.Não se duvida que, durante a sua longa existência, Saddam Hussein é responsável por graves crimes de direito internacional, nomeadamente crimes de guerra (por exemplo, a utilização de armas químicas na guerra contar o Irão), crimes contra a paz (designadamente a agressão ao Kuwait em 1991) e crimes contra a humanidade (especialmente a repressão contra a minoria nacional curda).Mas os Estados Unidos não estão nas melhores condições políticas e morais para promoverem o julgamento e a condenação dos responsáveis iraquianos. Primeiro, alguns desses crimes foram cometidos com o apoio e a conivência dos próprios Estados Unidos, como sucedeu na guerra Irão-Iraque, em que Washington utilizou Bagdad para combater Teerão, então o principal inimigo. Segundo, porque, depois de ter rejeitado a jurisdição do Tribunal Penal Internacional e de ter desencadeado uma feroz campanha contra ele, não sobra à Casa Branca grande legitimidade para submeter a julgamento crimes de inequívoca dimensão internacional penal. Finalmente, porque, ao promover o julgamento dos crimes alheios, os Estados Unidos não podem fazer esquecer os seus próprios.De facto, na recente guerra de ocupação do Iraque foi este país a vítima e foram os Estados Unidos os agressores. Não tendo havido nenhuma razão legítima para a guerra à face do direito internacional - pois que nem se podia invocar legítima defesa nem as Nações Unidas declararam uma situação de ameaça à paz e à segurança internacionais -, trata-se de uma agressão pura e simples, não menos censurável do que a agressão do Iraque ao Kuwait há uma dúzia de anos atrás. Não é por acaso que o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional prevê expressamente a agressão entre os crimes penais internacionais. E o facto de tal crime não ser ainda punível, por faltar a sua tipificação legislativa, não minora a sua censurabilidade sob o ponto de vista político e moral.Acresce que no decurso da guerra, ao passo que o Iraque não pode ser acusado de grandes violações do direito internacional da guerra - as tais "armas de destruição maciça", que tinham sido o grande pretexto da guerra, não só não foram utilizadas como nem sequer foram detectadas -, já o mesmo não sucede com os Estados Unidos, que recorreram à sistemática destruição de numerosos alvos civis e não hesitaram em utilizar armas proibidas propositadamente contra populações civis, como sucedeu com os vários ataques dirigidos contra mercados populares de Bagdad, com centenas de vítimas inocentes. Isto sem falar da criminosa passividade no caso pilhagem dos museus da capital iraquiana e do incêndio na biblioteca nacional, façanhas que hão-de ficar entre os mais vergonhosos "efeitos colaterais" da invasão americana do Iraque, tanto mais que os riscos tinham sido denunciados e eram claramente evitáveis. As tropas invasoras foram lestas na segurança dos poços de petróleo e do ministério do dito em Bagdad, mas preferiram fechar os olhos à destruição e roubo dos tesouros arqueológicos, artísticos e literários do Iraque, que são também da humanidade inteira. Os fáceis vencedores da guerra não podem furtar-se essa responsabilidade. Mais do que a destruição de um regime, a guerra conduziu à destruição de um país. Mais do que "libertar" o Iraque, a condução da guerra pareceu mais apostada em garantir que no final haveria a máxima destruição para garantir o máximo espaço para a "reconstrução", ou seja, para os contratos milionários prontamente assegurados às companhias norte-americanas, sem qualquer concurso internacional.Seja como for, a justiça penal internacional, inaugurada com os tribunais criados a seguir à II Guerra Mundial para julgar os responsáveis da Alemanha nazi e do Japão imperial, sofreu uma importante evolução desde então, designadamente a internacionalização dos tribunais. Primeiro, foi a criação dos tribunais penais internacionais "ad hoc" para a ex-Jugoslávia e para o Ruanda, por iniciativa das Nações Unidas; depois, veio a instituição do Tribunal Penal Internacional, da Haia, com base no Estatuto de Roma, subscrito neste momento por quase cem países, apesar do boicote militante dos Estados Unidos. Por isso, como defendia pertinentemente há dias, no diário italiano "La Repubblica", o prestigioso professor Sabino Cassese, o mínimo que se pode defender é que os acusados de crimes de direito internacional sejam julgados por tribunais internacionais minimamente credíveis e não por tribunais das potências vencedoras. A história, sabe-se bem, é escrita pelos vencedores e pelos seus escribas. Provavelmente nunca como nesta guerra se investiu tanto no condicionamento da informação e na manipulação da opinião pública. Nas vésperas da invasão, cerca de 70 por cento da opinião pública americana acreditava piamente que o Iraque possuía as armas de destruição maciça que Bush e a máquina de propaganda que o apoia asseverava existirem. Uma maioria ainda mais robusta confiava em que o regime iraquiano era um "santuário" e campo de treinos da Al-Qaeda e do terrorismo internacional. E o insuspeito embaixador José Cutileiro narra no "Expresso" de sábado passado a incrível parcialidade da informação sobre a guerra nos "media" norte-americanos.Nestas circunstâncias, uma adequada encenação de um julgamento dos responsáveis da ditadura iraquiana pode constituir uma oportuna "fuga para a frente", adequada para justificar perante a opinião pública uma guerra ilegal e despropositada. Mas um julgamento enviesado, por um tribunal constituído pelos vencedores, parcial e tendencioso, provavelmente sem adequadas garantias de "due process" (veja-se o que se passa com os detidos de Guantanamo, com gritante violação das mais elementares regras do processo penal...), seria um rude golpe na justiça penal internacional que as Nações Unidas laboriosamente vinham construindo e que culminou na criação do Tribunal Penal Internacional.Será que depois de terem espezinhado o direito internacional e amesquinhando as Nações Unidas - o principal esteio da ordem jurídica internacional há mais de meio século - os Estados Unidos estão determinados a não respeitar nenhum obstáculo à sua febre de mando e hegemonia imperial?Apostilas1. Bem-vindo, José Saramago, ainda que tardiamente, ao clube dos desiludidos da revolução cubana! Nada mais doloroso do que ver uma revolução libertadora dar lugar a uma ditadura em estertor repressivo, na fase final da sua degenerescência histórica. E nada mais revoltante do que vê-la justificada ainda em nome do socialismo.2. A candidatura de um dirigente partidário no activo ao Conselho Superior da Magistratura é uma desnecessária provocação à independência do órgão de governo da magistratura judicial. E se a lei é erradamente omissa sobre incompatibilidades dessa natureza, sempre bastaria a moral política e o sentido do conflito de interesses para impedir uma tal iniciativa.

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