Guerra mundial das máquinas de imprimir dinheiro está a avançar

Os maiores bancos centrais do mundo reagiram à falência do sistema financeiro com estímulos expansionistas, o que gerou uma "guerra monetária" em larga escala. O BCE está a ficar para trás e pode pôr o euro em risco. Os emergentes criticam

Explode a bolha imobiliária nos Estados Unidos: famílias e empresas não conseguem cumprir os seus compromissos financeiros. Por falta de liquidez nos bancos ou porque o temor do crédito fácil que fez disparar a crise do subprime em 2008 está ainda fresco na memória, a linha de crédito para as famílias e empresas contrai-se significativamente. Sem transferência de dinheiro de lado a lado e sem consumo, a economia entra numa espiral recessiva. O sistema financeiro cai com um estrondo que se alastra à Europa e ao mundo.

Foi neste contexto de dificuldade que entraram em cena os bancos centrais. O primeiro a agir foi a Reserva Federal dos Estados Unidos (Fed), logo em 2008. A sua primeira linha de acção, apesar de drástica, não fugiu aos métodos convencionais. É habitual que as taxas de juro de referência dos bancos centrais baixem quando é necessário estimular o consumo e fazer crescer a economia. Desta forma, os bancos convencionais conseguem financiar-se junto dos grandes bancos centrais a taxas de juro mais baixas, baixando eles próprios as taxas de juro nos créditos e potenciando a actividade económica.

A seguir à crise, estas taxas desceram como nunca se tinha visto: só em 2008, a Fed baixou sete vezes a sua taxa de juro de referência, de 3,5% em Janeiro para uns recordistas 0,25% em Dezembro, onde se mantém actualmente. O BCE demorou mais a agir, mas, em Julho deste ano, atingiu o seu mínimo histórico - 0,75%. O mesmo aconteceu com os restantes dois bancos do G4 - os mais poderosos bancos centrais do mundo -, o Banco da Inglaterra e o Banco do Japão.

Mas, mesmo com as taxas de juro dos bancos centrais praticamente a zero, nem por isso aumentavam as facilidades de crédito para a economia real. Era chegada a altura de os bancos centrais tirarem as grandes armas do coldre.

A Fed voltou a ser a primeira a disparar. Em Novembro de 2008, o banco central liderado por Ben Bernanke anunciava o primeiro programa de compra em larga escala de activos financeiros hipotecários aos bancos norte-americanos - leia-se, títulos de empréstimos hipotecários em segunda mão.

Em traços largos, o apelidado Quantitative Easing (QE) permitia aos bancos que fizessem créditos à habitação, por exemplo, aceder ao programa de compra de activos da Fed e reaver vantajosamente o dinheiro investido. Desta forma, o banco central contornava o problema da liquidez que restringia o sector financeiro sem que estivesse directamente a emprestar ao próprio sector bancário. De Janeiro de 2009 a Março de 2010, o primeiro programa QE da Fed compraria um total de 1,25 biliões (milhão de milhões) de euros em activos hipotecários.

Apenas dois meses depois do anúncio do banco central norte-americano, o Banco de Inglaterra deu início ao seu próprio programa de QE, com uma disponibilidade para a compra de 251 mil milhões de euros. Iniciativas semelhantes sucederam-se em cascata: em Outubro de 2010, o Banco do Japão cria oficialmente um novo programa deste género. Não satisfeitos com os resultados, a Fed e o Banco de Inglaterra anunciaram um QE2 e um QE3. O Japão anunciaria até hoje nada menos do que oito aumentos no fundo de compra de activos, que agora tem uma capacidade global de 8960 milhões de euros e cuja última expansão (a segunda em apenas dois meses) foi anunciada em finais de Outubro deste ano.

Mas, para além de abrir caminho a que outros bancos centrais adoptassem semelhantes políticas monetárias expansionistas, a Reserva Federal alimentou uma onda de contestação global (ver infografia) pelos riscos que os seus programas QE representam para o equilíbrio económico internacional.

A desvalorização do dólar

As críticas internacionais feitas aos dois anteriores programas da Fed agudizaram-se com o QE3. Existem vários riscos para os países cujos bancos centrais não estão dispostos a proteger-se com programas de compra de activos em larga escala, principalmente quando se trata de economias emergentes.

Apesar de os bancos centrais guardarem em reserva grande parte da moeda injectada, parte desse dinheiro vai acabar por chegar à economia real, aumentando assim a base monetária do país. A moeda funciona essencialmente como uma mercadoria, ou seja, com uma maior oferta o seu valor vai decrescer.

A base monetária dos Estados Unidos aumentou efectivamente durante os dois primeiros programas da Fed (ver gráfico), o que desvalorizou o dólar, embora a variação da moeda norte-americana esteja sujeita a outros factores, como a inevitável valorização pelo facto de a Europa estar agora mais acossada pela crise económica. À partida, desvalorizar a moeda traz vantagens competitivas no comércio internacional, ainda que o faça à custa do comércio internacional de outros países. Se o dólar valorizou consideravelmente nos últimos meses, a subida teria sido maior se não fosse pelos sucessivos QE.

Já em 2010, quando a Fed apresentou o QE2, a China e a Rússia protestaram contra o programa anunciando o abandono do dólar como a moeda utilizada para o comércio bilateral. Mas o QE3 foi consideravelmente mais expansionista: a Fed vai comprar 31,5 mil milhões de euros em activos todos os meses por tempo indeterminado (o equivalente ao valor da tranche de empréstimo atrasado que a Gr? ?cia tem tentado desbloquear).

O Brasil, pela voz do seu ministro das Finanças, Guido Mantega, tem liderado as críticas à política expansionista dos EUA, alegando que a Reserva Federal está a desenvolver uma política monetária "egoísta". Guido Mantega disse já que o Brasil está disposto a tomar medidas para que a cavalgada da liquidez do dólar não atinja o Brasil.

As acções dos bancos centrais dos países desenvolvidos são particularmente perigosas para as economias emergentes. O facto de as taxas de juro estarem tão baixas nos bancos centrais leva a que o capital - principalmente o volátil - não beneficie tanto nos bancos afectados pela crise e se desloque para onde as taxas de juro são maiores - precisamente nas economias emergentes.

Perigos para a zona euro

"Mãos longe das máquinas de impressão", gritavam em Berlim dezenas de manifestantes diante do Bundestag, no final de Outubro. Lá dentro, o presidente do BCE, Mario Draghi, explicava aos deputados alemães por que razão é que o novo programa de compra ilimitada de dívida do BCE não iria levar à desvalorização do euro e à inflação nas economias nacionais. O italiano assegurava aos alemães: "Por cada euro que injectarmos na economia, retiraremos um euro".

Quer isto dizer que, ao contrário do que está a acontecer com os outros grandes bancos centrais, o BCE não provocará uma expansão da base monetária. Considerando que os principais bancos centrais têm repetido os programas de compra de activos e tendo ainda em conta que não é líquido que esta tendência vá atenuar-se - a Fed, por exemplo, afirma que só vai interromper o QE3 caso o emprego e o crescimento económico nos EUA recuperem consideravelmente - o euro corre riscos de se sobrevalizar, o que afectaria a competitividade externa da região e, em última análise, agravaria as perspectivas da retoma económica na Europa, como afirmou ao PÚBLICO o economista belga Paul De Grauwe (ver entrevista ao lado).

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