Uma conquista nacional

a Em Porto Alegre, com o projecto do edifício da Fundação Iberê Camargo, Siza intromete--se num dos mitos fundadores da nação brasileira: a antropofagia. Não é a primeira vez que Siza canibaliza a moderna arquitectura brasileira - mas nunca antes tivera oportunidade de o fazer no seu próprio território, como acontece aqui, no Sul do Brasil.
Não que a história da arquitectura brasileira do século XX não esteja repleta de arquitectos vindos de fora. Lina Bo Bardi, por exemplo, que desembarcou no país em 1946 para se tornar uma das mais influentes arquitectas paulistas, era de origem italiana. E foi em Lina que Siza se apoiou para desenhar os tubos exteriores que assinalam a imagem de marca do edifício. Também nós tivemos os nossos arquitectos emigrados: Delfim Amorim, que se deslocou da Póvoa de Varzim para o Recife no início dos anos 50, ou Conceição e Silva, que se refugiou no Rio de Janeiro depois do 25 de Abril.
Mas estes arquitectos fizeram vida no Brasil e todos foram, com diferentes intensidades, contaminados pela arquitectura do país. Com Siza, o fenómeno pode eventualmente inverter-se e estão reunidas condições para que se possa dar uma contaminação "de fora para dentro", isto é, que Siza, um estrangeiro, possa colocar os brasileiros a falar sobre o sentido das suas tradições modernas e de como estas podem ser apropriadas na contemporaneidade, e fazê-lo numa perspectiva provocadora. Vai ser interessante acompanhar o percurso deste edifício após o dia de hoje, ou seja, no momento em que, terminada a obra, o arquitecto se retira e a deixa entregue ao seu próprio desígnio.
O caminho da arquitectura brasileira, principalmente aquele onde se pressente maior vivacidade, é de forte raiz moderna. Paulo Mendes da Rocha - actualmente a projectar para Lisboa, numa espécie de troca simbólica - é um arquitecto alicerçado no moderno. Em especial, Mendes da Rocha evoca a tradição tecnológica desse moderno, onde a estrutura é o molde da arquitectura.
Em Siza, a modernidade é forma, é intuição plástica, existe para lá (e por cima) da estrutura. O que Siza mimetiza em Porto Alegre não é a tradição construtiva brasileira da liberdade que o betão armado permite, mas a forma acabada enquanto curva, rampa, superfície empenada. Este facto é decisivo, porque remete para o lado artificioso e cenográfico que a arquitectura brasileira possui, mas que tendeu a ser abafado pela necessidade histórica que o projecto moderno teve em ser um programa ideológico e por isso socialmente correcto.
Esta espécie de compromisso social - que, aliás, os brasileiros tiveram dificuldade em cumprir - inibiu o carácter festivo e libertador de uma arquitectura referenciada em Oscar Niemeyer e que precisamente iludia a visão internacionalista do movimento moderno. Seria interessante colocar a Fundação Iberê Camargo no eixo da continuidade desse lado brasileiro denso e barroco e perceber o que pode acontecer a partir daí.
Com esta obra, Siza inicia uma nova fase nas relações culturais entre os dois países, através de um meio que não é o habitual - como a língua. Fá-lo ultrapassando as habituais dificuldades, a falta de dinheiro e a ausência de estratégia política. É por isso que a Fundação Iberê Camargo é mais que um edifício, é uma conquista nacional. Para já, é certo que o interesse em Siza, por parte dos brasileiros, vai redobrar.
Ana Vaz Milheiro

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