Portas do Sol voltam a gritar "Não, não, não nos representam"

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Na Praça da Catalunha, em Barcelona (esquerda), em Bruxelas (topo) e na praça central de Valência (em baixo), foram algumas das cidades onde milhares de pessoas sairam à rua LLUIS GENE/AFP

Durante o acampamento de 2011, 14.679 pessoas deixaram ideias escritas em pedaços de papel. Propostas cada vez mais válidas, diz quem voltou à praça, mas nem por isso mais perto de se tornarem reais

Há um ano passaram semanas acampados a exigir "Democracia Real". Foi essa ideia, aparentemente vaga, que permitiu unir tantas pessoas diferentes em torno de um movimento, o 15M. Chegaram a ser 500 mil reunidas em assembleia nas Portas do Sol de Madrid. A ideia continua válida e a praça voltou ontem a encher-se, num dia de protesto global que em Espanha assinalou o arranque das comemorações do primeiro aniversário do 15M.

"Nada melhorou, antes pelo contrário. Faço parte do grupo que este Governo mais prejudica. Sou estudante e de classe média, que é uma coisa que praticamente está a desaparecer", diz David Viejo, 27 anos.

Finalista de Design Gráfico, David veio de Guadalajara, a 60 quilómetros de Madrid, e foi dos primeiros a chegar às Portas do Sol, horas antes de ali começarem a desembocar as marchas "de Norte, Sul, Leste e Oeste", com as suas dezenas de cartazes diferentes, mostra das diferentes bandeiras que o 15M diz defender, e os activistas com pins laranjas e amarelos em forma de sol na lapela. Veio para protestar mas também para "mostrar solidariedade com o movimento", com "os mais empenhados, que passaram este ano a trabalhar".

Em 2011, enquanto durou o acampamento das Portas do Sol, os activistas mantiveram em permanência caixas de cartão e de madeira espalhadas pela praça onde quem quis depositou as suas propostas de mudança. Não é um programa eleitoral, é uma fotografia de Maio de 2001: 14.679 ideias que o movimento entretanto catalogou e publicou online (tomalaplaza.net).

O El País chama ao resultado uma "radiografia do pensamento indignado"; a Comissão de Propostas do 15M, que tratou os dados, quer apenas divulgá-los. A maioria das ideias são sobre política (33%) e economia (22%) e as propostas mais votadas cabem no grupo a que o movimento chamou "fim dos privilégios dos políticos". Entre os "boletins", 741 sugeriam que os políticos não possam acumular cargos, que se eliminem as ajudas de custo "exageradas" e se proíbam cargos por nomeação.

Em segundo lugar (628 pedidos), surge a mudança da lei eleitoral, uma das bandeiras do 15M - há um ano falava-se em promover uma iniciativa de legislação popular para forçar o Parlamento a tratar o tema, mas a intenção ficou pelo caminho.

Logo a seguir, 624 pessoas reclamaram medidas mais duras contra a corrupção em pedaços de papel.

Constantino, de 28 anos (a viver de um subsídio de baixa permanente por doença), e a namorada, Patricia, de 29 anos (trabalha nos correios), olham para os temas de há um ano e dizem que todos permanecem prioritários. "A questão dos privilégios é flagrante, não só dos políticos. Quase todos os meus amigos estão desempregados e nem um recebeu uma indemnização, como [Rodrigo] Rato [até ao início da semana presidente do Bankia, o quarto banco espanhol]", diz o jovem.

A dificuldade das propostas do 15M é que "só os políticos podem provocar mudanças nesses temas e nenhum dos dois partidos grandes o fará". A lei eleitoral, por exemplo, "serve aos dois", ao Partido Popular, de direita, no poder desde Novembro, e ao Partido Socialista, concorda Patricia. "Há partidos que me representam, o problema é que o meu voto não serve de nada", acrescenta Constantino. "Se o sistema fosse mais proporcional, os partidos mais pequenos teriam uma voz. Mas não vale a pena recolher assinaturas para levar isso ao Parlamento, o PP e o PSOE vão recusar debater a questão", diz.

Silvia, 29 anos, há seis meses no desemprego, veio até Madrid de um pequeno município a Leste da cidade e diz que tem mais motivos agora do que há um ano. "A base de tudo é a democracia. Sem isso não se reconstrói nada. E a nossa democracia está cada vez pior", sustenta, a apontar para o outro lado das Portas do Sol, junto à sede do município de Madrid, onde se vêem seis viaturas da polícia municipal e dezenas de polícias (a imagem repete-se nas ruas que saem da praça). "Agora nem sequer nos deixam ficar aqui como o ano passado. Mudaram a lei da resistência à autoridade."

Na noite de 16 de Maio de 2011, a polícia expulsou os manifestantes mas isso só chamou mais gente e o acampamento cresceu de tal forma que se tornou impraticável desalojá-lo. Face à dimensão do protesto nas Portas do Sol, o Governo anterior, de Rodriguez Zapatero, acabou por permitir que o acampamento aqui permanecesse.

O actual Governo avisou ainda em Abril que "os acampamentos nas praças são ilegais". Mas às 22h, hora limite para permanecer na rua segundo a delegação de Madrid do Executivo, umas 20 mil pessoas continuavam nas Portas do Sol. Milhares estavam determinados a passar a noite e muitos querem ficar até terça, dia do aniversário do movimento e feriado municipal.

"Não temos medo"

"Não, não, não temos medo", foi a primeira palavra de ordem da tarde, gritada por um activista de megafone em punho e repetida nas Portas do Sol ainda antes das 19h, no momento em que as marchas que se reuniram em dez praças de Madrid começavam o percurso até à praça-símbolo do 15M. "Não estamos aqui para lutar com ninguém", acrescentou o activista de megafone, membro da Comissão de Informação do 15M.

Miguel, 35 anos, integra a assembleia de bairro da Chueca e esteve nas Portas do Sol de Maio a Junho do ano passado. "Eu já saía à rua há muitos anos. Não foi nada de novo, mas pareceu-me fazer sentido. Era uma forma de protesto cómoda também, através das assembleias que votavam cada proposta todos sentíamos fazer parte de algo maior", explica.

Para Miguel, se voltassem a espalhar urnas improvisadas no Sol as propostas deixadas não seriam as mesmas.

"A lei eleitoral é muito injusta, mas para mim não é uma prioridade. Acho mais importante que as pessoas tenham ganho consciência de que podem conseguir resultados com acções de desobediência civil, como se tem feito para evitar os despejos", exemplifica. "Despejos já havia há cinco anos, mas há um ano aqui as pessoas diziam que não se podia fazer nada." Em toda a Espanha, o movimento anti-desejos, reunido em torno da Plataforma de Afectados pela Hipoteca, conseguiu parar ou adiar o despejo de mais de 220 famílias - a prova de que "a sociedade civil não precisa dos políticos para nada", segundo Miguel.

Denúncia e sucessos

Bene Llambra, psicólogo de 60 anos, membro das comissões Respeito e Informação do 15M, t-shirt amarela com um grande sol laranja vestida, ainda se revê na radiografia dos "indignados" de 2001. "Tenho pena que a proposta para mudar a lei eleitoral não tenha ido para a frente", diz, mas sublinha que "ainda há tempo".

"O trabalho de democratização e de participação cívica que se fez neste ano em cada assembleia de bairro é um grande sucesso", afirma. "O futuro vai trazer muitos mais sucessos", garante, e aponta o recém-criado Tribunal Cidadão da Justiça, uma iniciativa da comissão de Economia do 15M para reunir informações sobre crimes relacionados com a bolha imobiliária, como mostra disso mesmo. "Esta estrutura vai permitir recolher muita informação sobre as ilegalidades da banca e expor os abusos. Talvez consigamos vitórias em tribunal."

"Não somos mercadoria nas mãos de políticos e banqueiros", foi a mensagem global do protesto de ontem em Espanha. "Lei pró-patrão, explorar não", "Democracia real já, sem roubos", "Que cada voto valha o mesmo", lia-se nos cartazes do movimento, uma espécie de gigante aglutinador onde tudo cabe. "A crise é vossa, não a pagamos" e "Não, não nos representam", gritaram, entre tantos outros slogans.

Sara, 26 anos, estudante e trabalhadora precária, escolheu o cartaz "Violência é cobrar 600 euros", que "é mais ou menos o que eu ganho", diz. "Eu sou um pouco radical. É preciso protestar, sair à rua e gritar, mas isso não chega. Estou aqui a imaginar que os que me governam se estão a rir de nós em casa, sentados no sofá, e nós aqui, como há um ano. Vou voltar a cada protesto, mas sinceramente, era preciso uma revolução."

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