Porque são os estivadores de Lisboa ricos e fortes e os de Sines pobres e fracos

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A maioria, no porto de Sines, é constituída por trabalhadores com contrato a termo, que ganham o salário mínimo ou pouco mais

No porto de Lisboa a tradição de luta tem décadas. Em Sines, o sindicato foi criado pela empresa do terminal. Em Lisboa, o sindicato é rico e os estivadores ganham bem. Em Sines são pobres, mas acreditam na empresa

João Alves, mais conhecido como "João do Esfola", troca umas palavras com um estivador sueco grande e quadrado como um contentor. A seguir vai ao aeroporto buscar os belgas, levá-los a um hotel. Os estrangeiros chegam durante todo o dia, para participarem na manifestação. Espanhóis, franceses, finlandeses, noruegueses, suecos, cipriotas. Ao todo, quase cem, dirigentes sindicais na maioria.

O sueco tem no braço a tatuagem de uma mulher. "É uma enfermeira minha amiga", explica ele. Quase todos têm tatuagens. As dos mais antigos representam ganchos, correntes, cordas e outros instrumentos da estiva.

"Nós gostamos desta actividade", diz João Alves. "Ninguém quer fazer outra coisa. Os mais novos vêm para aqui e não saem de cá." Para explicar este amor pela profissão, João da Esfola tenta várias metáforas, mas decide-se por esta: as mulheres. "Isto é como amar uma mulher", declara ele. Mas com uma ressalva: "Aqui é para sempre."

Para quem está no auge de uma luta sem fim à vista, entre greves e manifestações com o objectivo de fazer abortar uma lei que vai ser irremediavelmente aprovada na Assembleia da República, reina uma estranha alegria na sede lisboeta do Sindicato dos Estivadores do Centro e Sul.

O ambiente é sempre assim, dizem os sócios. E quando há conflitos com os patrões e o Governo, ainda é mais. Os estivadores apreciam uma boa luta. "São fanfarrões", diz João do Esfola. "Gostam de se gabar que são os melhores, todos querem ser o número um." Gostam de competir entre si, até no trabalho. "Quando há duas equipas a trabalhar lado a lado, passam o tempo a mandar bocas uns aos outros, do género: "Tu se tivesses ficado hoje na cama, terias dado mais dinheiro a ganhar ao patrão""

Competem pela produtividade e força de cada um ou de cada equipa. Até entre os mais novos e os mais velhos. "Se estão a carregar sacos de 100 quilos, os velhos dizem sempre: "Isto não é nada. Vocês deviam ver como era dantes. Só sacos de 200 quilos.""

Há também uma aparente agressividade na linguagem e nos gestos. "Somos barulhentos, é verdade que gostamos de lançar uns petardos, mas é só isso. Não atiramos pedras à polícia", diz José Gaspar, que também pertence à direcção do sindicato. E João Alves explica que os palavrões com que se mimoseiam permanentemente uns aos outros não têm o significado de insultos. Pelo contrário.

Ele próprio se lembra de ouvir o pai chamá-lo, de cima de uma grua: "Venha cá, meu filho da puta." E responder: "Sim, meu pai."

João pertence a uma família de estivadores. A alcunha "do Esfola" deve-a ao avô, que, nos dias em que não conseguia trabalho na estiva, se dedicava a esfolar animais. O trabalho portuário não chegava para viver. Era preciso vir todos os dias para o Cais do Sodré, tentar a sorte. Uns cinco mil estivadores chegavam, às 6h30 da manhã, para o "conto". Alguns tinham trabalho, outros não. O Esfola fez isto toda a vida, até que, no porto, uma pedra de 40 toneladas lhe caiu em cima, e o matou. Mas os três filhos continuaram a trabalhar na estiva. Um deles, durante um ciclone, foi arrancado de um navio e afogou-se. João, que tem hoje 57 anos, lembra-se bem do tio Joaquim, que morreu há mais de 40. E lembra-se do pai, pela mesma altura, já envolvido nas greves. Uma vez, no início dos anos 60, a polícia veio interromper a greve clandestina, atacando a sede do sindicato, que já era neste mesmo local, na Rua do Alecrim. João lembra-se de ter de fugir, com o pai, pela rua acima.

Há pouco tempo, o sindicato mandou fazer um azulejo reproduzindo uma fotografia dos anos 30. Mostra uma multidão no meio da praça do Cais do Sodré. São os milhares de estivadores que vinham todos os dias para o "conto". "Era um ponto de encontro da imigração interna. Vinha gente do Norte do país, e até da Galiza." Mas também muitos de Lisboa. De Alfama, por exemplo, que era um dos bairros mais pobres da cidade. Era o caso da família de João.

Os patrões chegavam e escolhiam quem queriam. A maior parte dos chamados "homens da rua" voltava para casa sem trabalho. "O meu pai tinha meses em que só trabalhava um dia."

A partir de certa altura, todos estes trabalhadores precários tinham um seguro. E então surgiu um expediente desesperado: os estivadores amputavam um dedo, para receber da seguradora dois meses de salário. João do Esfola lembra-se de ver os homens colocarem propositadamente a mão na borda dos depósitos dos navios, e largarem a tampa, pesadíssima, que lhe cortava um dedo.

À custa das greves, muitas vezes reprimidas violentamente, as autoridades foram cedendo, e o sistema foi mudando. Por decreto, atribuiu-se ao sindicato a função de seleccionar os trabalhadores, que entretanto foram tirados da rua. Criou-se a Casa do Conto, nas instalações do antigo canil. "Tiraram os cães, para meter lá os estivadores", diz João. "Chamávamos-lhe a Casa do Cão."

Por imposição governamental, o sindicato era obrigado a dar emprego aos ex-condenados que saíam das prisões. A mão-de-obra da estiva, que aos poucos se foi efectivando, era composta por antigos criminosos, por imigrantes do Norte e homens da rua dos bairros pobres de Lisboa. Isso contribuiu para compor a imagem que ainda hoje existe, de gente agressiva e sem maneiras.

Todos os trabalhadores eram obrigados a registar-se no sindicato. Foi criado um sistema de fichas, pelo qual os mais antigos tinham prioridade na escolha. Além destes prioritários, havia os suplentes, que entravam nas épocas de pico de trabalho. Quando os "homens da rua" chegavam a suplentes, tinham a expectativa de chegar a prioritários. Foi o embrião do actual sistema.

Em 1980, o Governo atribuiu a função de seleccionar os trabalhadores dos portos ao Centro Coordenador do Trabalho Portuário, que integrava o sindicato, as empresas empregadoras e o próprio governo. Mas em 1982 são introduzidos os contentores nas operações portuárias e isso mudou tudo. Houve uma redução de mão-de-obra, uma reestruturação do sistema. Reforma compulsiva para dois mil trabalhadores. Em 1989, reforma obrigatória para quem tinha mais de 40 anos. E em 1992 foram afastados mais mil trabalhadores, mediante uma indemnização de 17 mil contos. Foi nessa altura que o sindicato negociou o actual contrato colectivo, que inclui certas regalias para os trabalhadores efectivos da ETP, a empresa que actualmente os emprega e cede para trabalho portuário.

"Com esta nova lei, nós podemos de facto perder os nossos postos de trabalho", diz José Gaspar, de 32 anos. O Governo promete que não, mas ele não acredita. "Se a maior parte das funções vai poder ser desempenhada por trabalhadores temporários, não especializados, que ganham o salário mínimo, que motivo terão as operadoras para nos manterem a nós?"

Não acredita João, nem acredita ninguém aqui no sindicato. "Não vale a pena estarmos a fazer acordos com as empresas operadoras. Se a lei permite a chamada "liberalização", eles vão tirar partido disso, mais cedo ou mais tarde."

Por isso todos acham que não há alternativa: é preciso ir para a luta. Mesmo depois da aprovação da lei, vão continuar. "Podemos andar a fazer greves durante meses, sem problemas", diz José Gaspar. Nalguns pontos, podem ceder. Noutros não. Não se importam de deixar de fazer tantas horas extraordinárias (até agradecem, diz José), mas não abdicam do que chamam "o âmbito". Trata-se da lista de funções, no trabalho portuário, que só eles podem fazer. Manobrador de trailer, de empilhadoras, de pás carregadoras, de gruas transtrailer ou giratórias, há uma série de funções que, segundo a nova lei, poderão ser desempenhadas por trabalhadores eventuais. Isso será o fim dos "privilégios".

Hoje, segundo o sistema em vigor, as promoções são automáticas, independentemente das funções ou das necessidades. De quatro em quatro anos, um estivador muda de escalão. De B8 a B3, o topo da carreira, leva 17 anos. No escalão superior, o salário é de cerca de 2300 euros mensais, fora as horas extraordinárias, que podem ser usadas sem limite. Isso pode fazer subir o salário até uns cinco mil euros. "Mas é difícil, porque implica trabalhar quase ininterruptamente", diz José. "Ninguém quer isso. Se trabalhamos tantas horas, é porque os patrões obrigam. Isso faz com que passemos mais tempo uns com os outros do que com as famílias." E essa é uma das razões por que são tão unidos. "Somos como uma família. E a culpa disso é dos patrões, que nos obrigam a trabalhar tantas horas."

É essa união e a consciência de que são um sector imprescindível que tornam possível fazer greves por tempo indeterminado. Mas também o facto de o sindicato ser rico. O fundo de greve existe há décadas e permite pagar compensações aos trabalhadores. Todos pagam 4% do salário para este fundo. Agora, numa previsão de duras lutas no futuro, a taxa foi aumentada para 4,5%. "Eu já recebi mais do que paguei, do fundo de greve", diz José.

Além disso, a gestão financeira do sindicato é feita com grande rigor. Quando João do Esfola, que é vice-presidente do sindicato, apresentou a factura do megafone que tinha comprado, responderam-lhe que ninguém lhe encomendara aquela despesa. "Depois da manifestação podes ficar com o megafone", disseram. E não o reembolsaram.

Sines sem fundo de greve

Os estivadores do porto de Sines não têm fundo de greve. Descontam para o sindicato apenas 1,5% do salário. Mais 0,25% a partir de agora. "Eu não posso pedir a estes homens que façam oito dias de greve", diz Joaquim Palheiro, presidente do Sindicato XXI. "São pessoas que, na maioria, ganham o salário mínimo."

O Sindicato XXI não tem uma história parecida com o seu congénere de Lisboa e centro. Engloba todos os trabalhadores do Terminal XXI (não só os estivadores), do cais do porto de Sines, que é administrado por uma empresa de Singapura, a Port Singapore Authority (PSA).

Aqui, o regime de trabalho não inclui nenhum dos privilégios de que gozam os trabalhadores de Lisboa ou Aveiro. Não há promoções automáticas. As funções são atribuídas segundo as necessidades. "Não vamos dar aos trabalhadores a ilusão de que todos vão poder ser operadores de pórtico, quando sabemos que só há oito pórticos. A maioria nunca chegará lá", diz José Gaspar. A maioria, no porto de Sines, é constituída por trabalhadores com contrato a termo, que ganham o salário mínimo ou pouco mais, e tem poucas perspectivas de promoção.

Mas nem por isso estão dispostos a embarcar em lutas de grande risco. David Pilar, de 23 anos, entrou há cerca de um ano para a empresa. Tinha trabalhado numa fábrica como serralheiro, mas foi despedido. Concorreu à PSA e agora conduz um camião que transporta contentores. Não tem carta de pesados, pelo que, se for despedido, não poderá exercer as mesmas funções noutra empresa, fora do porto. Mas sente-se satisfeito. Foi o pai, que trabalha na construção civil, que recomendou: "Filho, vai para a estiva, que lá pagam bem." Ele tentou, e teve sorte. Eram 300 candidatos, para 30 vagas. "Pensei que isto era algo a que me podia agarrar. Como isto está... é um bom emprego. Estes pagam, nunca falham."

David ganha o salário mínimo, mas tem esperança de ser promovido. Gostaria de vir a ser um dia operador de informações, onde o salário é de 800 euros. Acredita que chegará lá, porque a empresa está em expansão.

A PSA faz os empregados acreditarem que vai aumentar o terminal e que terá mais tráfego devido à abertura do Canal do Panamá. "Eu quero ficar aqui", diz David. "Gosto do trabalho, acho que é um emprego de futuro."

Não há alternativas na região, para os jovens, explica Joaquim Palheiro. "Trabalhar aqui é visto como um privilégio, e as pessoas vestem a camisola da empresa." O sindicato não tem tradição. Foi criado pela própria PSA e no início era, admite Joaquim, um sindicato fantoche. Agora ganhou alguma autonomia. No actual processo, chegou a organizar uns dias de greve. Conseguiu-se um acordo que promete manter os postos de trabalho. Não é uma grande conquista, mas não há força para mais.

"Se eu conseguisse fazer oito dias de greve aqui em Sines, o Governo cedia imediatamente, e a lei caía. Mas não posso pedir isto a estas pessoas", diz Joaquim Palheiro, de 55 anos, que foi ele próprio um "homem da rua" nos portos de Lisboa e Setúbal.

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