MARIA JOSÉ VILAÇA Despenalizar o aborto é dizer que é um crime, mas só um bocadinho

Uma recebe-nos no consultório; a outra em casa, acompanhada pelo filho, que se retira, discreto, quando a entrevista começa. Teresa e Maria José são psicólogas, de idades semelhantes mas convicções opostas no que ao fenómeno do aborto em geral e ao referendo em particular diz respeito. Sem hesitações ou estados de alma. Por Adelino Gomes

O consultório, quente e acolhedor, nas águas-furtadas de uma rua íngreme, não longe do Tejo, serve de cenário ao encontro. Teresa Sá não quer entrar em confissões de carácter pessoal. Mas considera que as reflexões que partilhará com os leitores do PÚBLICO - e que alinhou numa letra desenhada, quase sem emendas, em folhas A4, que conserva por perto - estão longe da argumentação tonitruante que se ouve na campanha. Enuncia-as, sentada no sofá, em tom contido e pausado, quase não dando ouvidos às interrupções do contraditório canónico."A gravidez é um processo complexo e completo que envolve a barriga, o coração e a cabeça. Uma gravidez só de barriga, sem desejo, sem afecto e sem projecto é uma gravidez de risco para todos e em particular para uma criança que venha a nascer", começa por dizer.
A criança "não pediu para nascer". É por isso que mulher, famílias e adultos em geral "são responsáveis e podem ser responsabilizados se as não souberem cuidar, educar".
A mulher que não se sente capaz de "assumir com condições essa tarefa tem o direito de parar o processo para evitar maiores danos, a si mesma e aos outros. Poderá ser em tais casos uma decisão madura, adulta, responsável, corajosa, de que uma mulher não tem que se sentir culpada".
Apostado "na compreensibilidade e não no julgamento", o raciocínio contempla, a par e passo, um e outro lados da equação. "As crianças têm direito a mães e pais responsáveis que as ajudem a crescer felizes; as mulheres, os homens, as famílias têm direito a determinar o curso que pretendem dar às suas vidas. Essa escolha tem que ser possível. Essa decisão deverá ser respeitada."
Encerra com uma breve incursão comparativa por aspectos da história e geografia do aborto. Até ao século XX a escolha de ter filhos era quase inexistente. Multiplicavam-se as crianças "abandonadas, expostas na roda, mortas à pancada". Hoje, as sociedades que mais praticam a contracepção e em que a maternidade e paternidade resultam de uma escolha livre e responsável são, ao mesmo tempo, "as sociedades que praticam menos violência sobre as crianças".
BI
Maria José Vilaça nasceu em 1959.
Casada, três filhos.
Licenciada em Psicologia.
Pós-graduação em Orientação e Mediação familiar.
Formação em Logoterapia (Espanha, fase final).

Se lhe perguntarmos onde votou em 1998 demorará algum tempo a responder. Provavelmente no "não", mas admite ter-se abstido. Não vale a pena apontar-lhe a contradição. Serenamente, responde ter "a vaga ideia" de que na altura pensou tratar-se de um assunto demasiado pessoal, acerca do qual quem por ele não passou não deve pronunciar-se.
Nada a ver, pois, com hesitações ou estados de alma. A sua posição perante o aborto e a despenalização era, então, igual à que defende hoje. Alterou-se, apenas, a aproximação pública que ao fenómeno aceita fazer. Por uma questão "de crescimento", isto é, "fruto do conhecimento".
A pergunta referendária conduz directamente "à liberalização a pedido", diz. "E mais nada." Porque, a ser permitida, teria que haver razões. Ora, "qualquer lei que seja incongruente com a moral natural das pessoas é perigosa. Porque confunde."
O modo como a pergunta está construída não aponta para a despenalização. Responder "sim" significa que o aborto "deixa de ser proibido e passa a ser um direito". A manutenção da censura penal é uma espécie de baliza que dá um pouco o valor que o crime tem. Assim sendo, "se eu acho que o aborto é um crime, despenalizá-lo é dizer que é um crime, mas só um bocadinho".
Contesta também o argumento, avançado logo no primeiro texto desta série por Luís Moita, de que nem as famílias mais religiosas dão enterro religioso aos fetos nascidos, por exemplo, de aborto espontâneo. Recorre à sua própria experiência: "Há cerca de dois anos - uma semana depois da morte do Papa João Paulo II [em Abril de 2005] -, perdi um bebé com oito semanas e o meu marido e eu fizemos uma "despedida cristã". Há lutos muito difíceis na morte de um filho, seja em que estádio for. Mesmo no aborto espontâneo há um sentimento de alguma culpa. Muitas vezes a mulher sente que foi incapaz de proteger o seu bebé. O que quer que seja que aconteceu, aconteceu dentro do corpo dela."
Invoca ainda o exemplo da China: "Apesar de lá o aborto ser totalmente livre e às vezes promovido, as famílias fazem uma cerimónia religiosa a todos os bebés abortados."
Sim
Não

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