Esquerda está fragmentada e dificilmente poderá unir-se

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A manifestação de 12 de Março de 2011 uniu todos num protesto contra o Governo de Sócrates Daniel Rocha

A esquerda portuguesa está de novo mais fragmentada. A razão directa parece ser a crise económica e social, dizem os especialistas. Uma divisão que para alguns é inultrapassável e não tem semelhanças com a Grécia, embora haja sinais novos

No próximo domingo, os gregos voltam a expressar-se nas urnas sobre a governação que desejam e as sondagens mostram que pode dar-se a vitória da Coligação de Esquerda Radical - Syriza, que reúne desde 2004 pequenos grupos de extrema-esquerda ao Synaspismos, um partido nascido de uma cisão do Partido Comunista Grego (KKE). Com um discurso contra a austeridade imposto por dois anos de intervenção da Comissão Europeia, o Syriza é a novidade, com quase 17% nas legislativas. Depois de, em 2007, ter ficado nos 5%, capitaliza a contestação aos programas de austeridade e é o fruto de uma tradição radical de protesto.

Em Portugal, a situação é diversa, a reacção popular à crise tem sido mais pacífica e a intervenção externa tem sido menor e dura há menos tempo, mas, mesmo assim, será possível que uma vitória do Syriza venha a influenciar a esquerda europeia e, logo, a portuguesa? Será que esta dinâmica de unidade de esquerda pode tornar apetecível um clima de convergência na esquerda portuguesa e provocar dinâmicas de aproximação? Será que os novos fenómenos que têm surgido em Portugal, desde a Iniciativa por uma Auditoria Cidadã ao Manifesto para uma Esquerda Livre, podem contribuir para novas dinâmicas de unidade?

"A política são símbolos e estamos à beira de uma grande mudança simbólica na Grécia. O que é interessante na Grécia é o desencadear de algo maior que ela, pode provocar um subir de fase", admite Manuel Maria Carrilho, professor catedrático da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e antigo ministro da Cultura do PS. E Isabel Allegro de Magalhães, antiga secretária-geral do Graal e professora catedrática da mesma faculdade, afirma: "Na Grécia, Deus queira que ganhe a esquerda, será mais interessante que as direitas que têm estado e estão no poder e que, a meu ver, englobam o PS."

Portugal em contra-mão

Comparando com Portugal, Boaventura de Sousa Santos, professor catedrático jubilado e presidente do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, sublinha que "a esquerda portuguesa foi apanhada em contra-mão", já que "o PS ficou penalizado ao assinar a troika, o PCP sempre foi contra o projecto europeu, o BE não teve tempo de passar a mensagem de que é igual à Syriza". E remata: "Uma coisa é ter ideia de unidade, outra é ser viável."

Francisco Louçã, líder do BE e, nessa condição, figura central do puzzle da esquerda, está céptico perante tal hipótese. Admite que o assunto está em debate no BE, no âmbito da preparação da convenção - sobre a qual não abre o jogo no que se refere à sua saída ou não da liderança - e lembra que o BE desenvolveu uma estratégia unitária no passado: "Nós defendemos o conceito de Esquerda Grande e foi essa estratégia que nos conduziu nas presidenciais, nas iniciativas unitárias na Aula Magna com Manuel Alegre e Carvalho da Silva. E é esse espírito que faz com que BE esteja na Iniciativa por uma Auditoria Cidadã à Dívida."

O líder do BE lembra, porém, que "a circunstância política mudou". Hoje, em Portugal, "há intervenção externa, o Governo é PSD-CDS, os centros de poder e de política mudaram, vive-se uma austeridade autoritária". Admite que "há factores, como o precariado, que ganharam força" e sustenta que "é importante" que haja movimentos de cidadãos: "O Manifesto por uma Esquerda Livre, assim como o pela Grécia, juntam gente e é excelente." Contudo, frisa que "as decisões políticas e de governação têm de ser tomadas nos parlamentos". Isto porque "a democracia representativa mantém-se, é enriquecida com e deve até ser invadida pelos movimentos, mas a decisão cabe à representação partidária no Parlamento".

Domingos Lopes, ex-dirigente do PCP, concorda que "há um bloqueio que resulta do espectro partidário", que leva a uma "fragmentação ainda tendo em conta a inexistência de um movimento cívico capaz de abraçar as diversas alternativas face ao Pacto de Estabilidade e ao Memorando".

Esta ideia de fragmentação é explicada por Ruben de Carvalho, dirigente do PCP e vereador da Câmara de Lisboa, para quem "a fragmentação de influência anarquizante que se vive é um reflexo directo - sempre foi. E reforça a ideia, considerando que esta "é uma fase pouco estruturada do capitalismo, que se está a desestruturar - já não há quem negue que há crise -, e isto gera uma anarquização do conceito de organização na intervenção social e política".

Igual visão tem Pacheco Pereira, historiador, analista político e antigo dirigente do PSD. "Se se analisar a esquerda do PCP, a área ocupada pelo BE, vemos um processo de fragmentação", afirma, explicando que, "apesar das ligações ao Syriza e de alguns dirigentes do BE participarem das reuniões da IV Internacional [trotskista], não há semelhança". E pormenoriza: "No passado, o BE federou essas esquerdas, os maoístas da UDP, que tinha mais operariado e de fora de Lisboa, os trotskistas, do PSR, com intelectuais, estudantes e a esquerda chique. E absorveu as questões de género, da droga, etc., que lhe permitiu recuperar eleitoralmente os jovens filhos da média burguesia urbana, mas estes mudaram, são agora mais radicais e mais dificilmente controláveis."

O historiador frisa que hoje "há uma componente cultural que é difícil de absorver pelos partidos", isto porque, "com a crise, há novos movimentos, o 12 de Março, o 15 de Outubro", que nasceram da primeira manifestação, mas esclarece que esta foi feita "contra Sócrates e teve até manifestantes de extrema-direita, extrema-esquerda e os antipolítica".

Pacheco sublinha que "este radicalismo dos filhos da classe média reflecte o radicalismo dos pais", mas "é um radicalismo diferente, não centrado em influenciar o poder, antes ligado a causas internacionais", assim "não tem preocupação com a mobilização política". E exemplifica: "Vemos isso no Anonymous [movimento nascido na Net em 2003] e nos movimentos dos direitos dos animais, que têm sucesso, pois o Partido pelos Animais e pela Natureza (PAN) quase elegeu um deputado em Lisboa. Há também movimentos feministas, anarquistas, seguidores do Black Block [movimento anarquista internacional antiglobalização], assim como há movimentos ligados ao Antifa [grupo francês de defesa multiétnica], em que a apologia da violência é um modo de identidade."

Ora a fragmentação que se vive na esquerda inclui, segundo Pacheco, também "o Manifesto para uma Esquerda Livre, que são sociais-democratas perante esta extrema-esquerda". Em contraponto, diz que "a esquerda do PS podia estar no actual BE". Salientando que "alguns destes movimentos são importantes", o historiador sustenta que se vive "um momento de transição em que a característica é a fragmentação". E Pacheco não acredita nem em aglutinação e unidade, nem em que estes movimentos revertam para os partidos. Por um lado, dos partidos existentes, "o BE tem ligação com estes sectores, através dos movimentos de precários, mas não tem possibilidade nem vontade de os atrair, pois não têm substância política".

A peculiaridade do PCP

Nesse sentido reflecte Ruben de Carvalho: "Unidade para quê? Cada um já tem o seu programa, é para isso que há partidos. Eu não sei se todos os militantes do PCP pensam como eu, provavelmente não pensam, mas coincidimos naquilo que está no programa." E, falando enquanto dirigente do PCP, acrescenta: "O PCP tem de fazer unidade com quem e para quê? Somos contra a unidade da burguesia em torno dos seus interesses, termos de ter a nossa, mas para quê? Em torno de quê?"

Ana Benavente, militante do PS, antiga secretária de Estado da Educação de António Guterres, presidente da associação responsável pela Iniciativa para uma Auditoria Cidadã e professora na Universidade Lusófona, adverte que "o PCP faz o seu caminho solitário, mas isso não quer dizer que não haja no PCP pessoas que querem debater propostas."

A peculiaridade do PCP é salientada por Pacheco, ao referir que "há ainda um protesto que na rua está separado, o da CGTP", o qual advém de "uma cultura própria, operária e comunista". E diz: "O PCP não muda, porque, se muda, atrai quem? Jerónimo [de Sousa] tem identidade, é um deles, coisa que [Álvaro] Cunhal e [Carlos] Carvalhas não era, foi operário, fez a guerra colonial." É por isso que Pacheco justifica que "o PCP, neste momento de crise, está acantonado na sua base social de apoio, à semelhança do PC grego e do cipriota", e assim "garante o presente".

Há ainda um outro impedimento à unidade, segundo Pacheco. Com a actual legislação eleitoral e partidária, acrescenta, é "difícil afirmar novos partidos". Só se for "afirmado no discurso populista e antipolítica: Fernando Nobre tentou isso mas depois entregou-se a um partido, o PP de Manuel Monteiro foi isso, Santana Lopes tentou-o na fase final." E exclui que seja essa a intenção ou o futuro de Carvalho da Silva: "Carvalho da Silva não serve para esse papel. Ele é de esquerda moderada e esse espaço está ocupado pelos partidos e pelos movimentos. Mesmo para ser candidato a Presidente tem de ter o apoio do PS e do BE."

Para além do presente, há o peso do passado. Boaventura de Sousa Santos lembra que, "desde 1914, senão antes, o problema é unificar as diversas esquerdas". E Viriato Soromenho Marques, professor catedrático na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, explica que "não é a primeira vez que há esta fragmentação". Já que, "à fragmentação económica, segue-se a política, do Estado e depois partidária". Isto aconteceu, refere, na I Guerra, quando "a Europa era um circo partidário".

É por isso que este filósofo diz que "Portugal é candidato a essa fragmentação". Assim como "a Espanha, que é pior, porque aí é a ideia de Espanha que está em causa". Mas aduz que, "em França, há demagogia à esquerda e à direita". E conclui que "a União Europeia não foi capaz de dar o passo em frente e o que está a acontecer são os sintomas de decadência de um sistema".

Soromenho Marques não vê que haja qualquer sinal de unidade. "Só uma pessoa demagoga pode achar positivo os cidadãos na rua, só num primeiro momento é assim". E, lembrando que "o darwinismo social selecciona os mais simples", sublinha que "na Europa surgem coisas novas mas podem ser os coveiros do sistema", dando como exemplo que "o partido nazi na Grécia teve 21 lugares do Parlamento". E sustenta que "há a falência de elites ignorantes, que está a fazer surgir uma elite medíocre e populista", estando "a Europa mais perto do tribalismo do que do federalismo".

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