Até Gil Vicente falava de Francisco de Melo nas suas peças de teatro

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Henrique Leitão e Bernardo Mota estudam há mais de um ano os trabalhos de Francisco de Melo Nuno Ferreira Santos

Que qualidade tinha realmente a Matemática de Francisco de Melo? E que ligação teve ele com Pedro Nunes? São questões que a descoberta do códice pode vir a esclarecer

No Auto da Feira, Gil Vicente refere-se a Francisco de Melo como o homem que sabe de ciência abundantemente. O matemático português fez nome durante os dez anos em que esteve na Universidade de Paris, onde desenvolveu a Matemática descrita no códice de 1521, que ofereceu a D. Manuel I. Mas qual era a sua importância na época e que valor científico tinha o seu trabalho?

Estas são algumas das questões levantadas pela descoberta do manuscrito de 1521 e que podem mudar aquilo que conhecíamos sobre o passado da ciência portuguesa. "Arejar as personalidades históricas é uma coisa muito importante", defende Henrique Leitão, historiador de ciência da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.

Este investigador e Bernardo Mota, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, estavam há mais de um ano a trabalhar na cópia do códice que se encontra na Biblioteca Nacional. Mas, com o aparecimento do original, o seu trabalho ganhou um novo ímpeto.

"A parte mais interessante vai ser a análise do conteúdo da obra", explica Bernardo Mota, que passou muito tempo a transcrever o texto em latim. Francisco de Melo escreveu dois capítulos sobre Euclides e outro sobre Arquimedes, que não visavam nenhuma aplicação. Eram trabalhos intelectuais. Nos textos de Euclides, um dos problemas colocados pelo matemático grego refere-se à incidência de luz sobre uma esfera: "Que parte é que fica iluminada? Isto é importante por causa dos planetas", diz Henrique Leitão, acrescentado que o assunto era relevante para a Astronomia e era discutido na época.

O trabalho sobre a hidrostática de Arquimedes, que analisa a flutuação de objectos na água, foi citado posteriormente por outros cientistas. "Só os melhores matemáticos trabalhavam os textos de Arquimedes", explica Henrique Leitão, referindo-se a Francisco de Melo como "o grande nome da Matemática portuguesa até chegar Pedro Nunes". Mas será com este documento que se compreenderá exactamente a sua dimensão.

O matemático nasceu em Lisboa, em 1490. Era filho de Manuel de Melo, o representante de D. João II em Olivença. Estudou na Universidade de Lisboa, onde obteve o grau de mestre em Artes. Em 1514, foi enviado para Paris como bolseiro do rei D. Manuel I, onde fez a licenciatura em Teologia, deu aulas e produziu o manuscrito. Em 1924, voltou para Portugal e foi nomeado, já por D. João III - D. Manuel I morreu no final de 1921, o ano em que terá recebido a oferta do matemático -, como mestre de Matemática dos infantes.

Quando Francisco de Melo volta de Paris, só existem outros cinco a dez matemáticos no país, entre Lisboa e Coimbra. Esta ida ao estrangeiro e vinda é como as viagens de muitos cientistas de agora. "Mandar pessoas para estudar fora de Portugal faz-se há séculos. O problema foi sempre igual ao que temos hoje: como é que as integramos quando elas retornam? Francisco de Melo deixou a Matemática quando chegou a Portugal. É um padrão muito conhecido", aponta Henrique Leitão.

Mas o mérito do matemático foi reconhecido quando regressou. Gil Vicente referiu-o no Auto da Feira, que apresentou na corte, em 1926: "Esse Francisco de Melo que sabe ciência avondo [abundantemente] diz que o céu é redondo e o sol sobre amarelo, diz verdade, não lho escondo", lê-se na peça.

Mais tarde, o matemático foi nomeado reitor da Universidade de Lisboa. E é como reitor que Henrique Leitão especula que Francisco de Melo terá tido contacto com Pedro Nunes, que irá produzir uma obra importante na Matemática, com os seus trabalhos sobre cartografia e as linhas de rumo para as viagens longas. Fez ainda a descrição do nónio, um objecto que melhora a medição do crepúsculo solar para cada lugar do globo.

Pedro Nunes terá voltado de Salamanca em 1527, depois de ter terminado a licenciatura em Medicina, aos 25 anos. E foi para a Universidade de Lisboa para completar o doutoramento. Será que teve contacto com Francisco de Melo? "Lisboa era minúscula e a minha especulação é que conheceu Francisco de Melo, os seus trabalhos, discutiu com ele, começou a estudar Matemática e transformou-se num matemático", imagina o historiador. Pedro Nunes publicou o seu primeiro trabalho de relevo um ano depois da morte de Francisco de Melo, e iria ter uma carreira com influência internacional.

"O aparecimento destes manuscritos tira estas personalidades do esquecimento e trá-las para a luz", avalia Henrique Leitão. Mesmo ao nível do conteúdo científico, espera-se que o documento dê indicações sobre os trabalhos académicos a que o matemático teve acesso em Paris e o que se estudava lá. Um dos exemplos é o trabalho sobre a óptica de Euclides, no qual Francisco de Melo abordou a fisiologia do olho, também estudada pelos árabes e que serviu de inspiração ao matemático português.

"Francisco de Melo estava a ser estudado por nós devagarinho. Mas agora é fascinante, vamos acabar isto num ano", diz o historiador, prometendo a publicação de um livro. "Vamos estudar todas as ramificações, vamos olhar para tudo o que já se viu e fazer figas para que apareça mais documentação."

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