A arte de bem navegar à bolina

Uff! Chegou ao fim. Guterres aguentou quatro anos como primeiro-ministro, estreando o Governo de legislatura com maioria relativa. Uma proeza feita à custa de negociações parlamentares, ora com o PSD, ora com o PP, mas também com o PCP. Conseguiu até rever a Constituição e ensaiar duas reformas, a do século, regionalização, e outra de mentalidades, despenalização do aborto. Obra em que contou com a ajuda do líder da oposição Marcelo Rebelo de Sousa, com quem partilhou uma estratégia de sobrevivência. E a oposição activa de parte da sua bancada. O PÚBLICO recorda os principais momentos da legislatura, dá conta da prestação dos partidos, elege as figuras da AR durante este anos, que ficaram marcados pela chuva de inquéritos parlamentares e pelo protagonismo do presidente do Parlamento.

Pela primeira vez no Portugal democrático um Governo de maioria relativa cumpriu uma legislatura. E fê-lo com um grau de aceitação pública que lhe permitiu, à beira do fim do mandato de quatro anos, manter o "score" eleitoral acima dos 40 por cento nas eleições europeias do passado dia 13. Ou seja, António Guterres fez aquilo que se apresentava como a quadratura do círculo: aguentar um Governo quatro anos sem maioria de apoio parlamentar e conseguir que a sua popularidade junto dos eleitores não saísse beliscada.O objectivo estreado por Guterres foi atingido através de um percurso de gestão pontual de compromissos com os partidos de oposição parlamentar, numa espécie de navegação à bolina e com um eterno sorriso nos lábios, que lhe permitiu arrancar uma revisão constitucional, tentar uma reforma de fundo - a regionalização chumbada nas urnas -, uma outra de mentalidades - a despenalização do aborto também rejeitada em referendo -, encenando crises de demissão q. b. e ainda ver cair o líder da oposição à beira das eleições europeias.Eleito em Outubro de 1995, Guterres toma posse como primeiro-ministro, mas a sua "Nova Maioria" fica a quatro deputados do desejado sonho de igualar Cavaco Silva e poder governar sem dar satisfações a ninguém. Logo, se não pode "mandar" na Assembleia, Guterres aprende, rápido, a conviver com ela. E elege como "parceiro" privilegiado de começo de caminho o PP de Manuel Monteiro, sedento de protagonismo mediático, que inundara São Bento com 15 deputados eleitos com base num discurso radical e populista, capitalizando com o desgaste do consulado de Cavaco. É a época de ouro do monteirismo, ainda antes de "o golpe da caneta", que anulou a eleição de Paulo Portas como líder de bancada, ter inaugurado, enquanto reflexo parlamentar, a crise suicida do PP.Assim, o primeiro Orçamento do Estado da legislatura, para 1996, é aprovado, fruto da arte de negociar de Guterres numa "suite" de hotel, satisfazendo alguns interesses da Confederação da Indústria Portuguesa (CIP) de Pedro Ferraz da Costa e da qual Monteiro fora funcionário. O trabalho de partir pedra é feito na AR, tendo como factor de descompressão a amizade liceal entre Manuel Monteiro e António Costa, então secretário dos Assuntos Parlamentares.O "namoro" com o PP serviu ainda ao PS para arrancar com uma tarefa quase impossível em tempos de minorias: a revisão constitucional. Com o PSD fora da comissão eventual de revisão constitucional, é com o então líder parlamentar do PP, Jorge Ferreira, e o deputado popular Paulo Portas que o PS vai ensaiando as primeiras tentativas de resistir às exigências sociais-democratas de que a criação de regiões passasse por um referendo nacional.É que, entretanto, o PSD tentava acordar da ressaca do fim do poder absoluto e elegera Marcelo Rebelo de Sousa em Santa Maria da Feira. No auditório da Exponor, o professor escolhe os paus com que vai construir a jangada para iniciar a longa travessia da chefia da oposição: o PSD aceita participar na revisão constitucional e dar ao PS o espaço para cumprir a sua "promessa das promessas", a regionalização, mas só se o povo for ouvido nas urnas sobre ela, em referendo nacional. Uma estratégia conduzida parlamentarmente por Marques Mendes, já que Marcelo não era deputado.Rentabilizando um conhecimento mútuo de outras décadas, Guterres e Marcelo iniciam então uma relação benéfica às estratégias de sobrevivência política de ambos: Guterres não tem de arriscar eleições antecipadas onde a maioria absoluta poderia não estar ao virar da esquina e Marcelo evitava o embate das urnas antes de ter tempo para procurar limpar os traumas do cavaquismo da memória do eleitorado.Usando a Assembleia como palco e os respectivos grupos parlamentares como actores e figurantes, Guterres e Marcelo foram partilhando pequenas vitórias: terminaram a revisão constitucional, asseguraram a aprovação de três orçamentos, um deles vital para a permanência de Portugal na moeda única, e despacharam para referendo duas questões incómodas, regionalização e despenalização do aborto. Pelo caminho, aprovaram e enterraram mais um terceiro referendo, este sobre Europa.Mas a habilidade de Guterres - alcunhada de "diálogo" e posta em prática diariamente pelo jogo de rins de António Costa, erguido a ministro com a queda de António Vitorino - permitiu ao PS jogar no tabuleiro do PCP. Sobretudo quando era necessário esticar a corda à esquerda para levantar o preço do negócio face ao PSD. E os comunistas foram assim o par ideal para forçar a aprovação na generalidade da criação de regiões.Só que a vocação do PCP não era, decididamente, a de funcionar como "muleta" parlamentar. E, em 1997, na primeira tentativa do PS para alterar o sistema de financiamento às autarquias, o PCP roeu a corda e, à última hora, "colocou-se" ao lado do PSD e do PP. Guterres levantou a voz, premiou a oposição com o rótulo de "coligação negativa" e ameaçou bater com a porta e lançar o país em eleições antecipadas. Numa jogada não concretizada, até porque o ónus da culpa poderia ser penalizante nas urnas para o PS.Gerindo com alguma mestria o avanço contra os ventos contrários da legislatura, Guterres teve na própria bancada socialista talvez o seu mais difícil obstáculo. Liderado por Manuel Alegre, amigo de Mário Soares, um grupo de socialistas espingardeou quanto pôde contra a revisão constitucional que dava ao PSD a redução do número de deputados e o voto universal para os emigrantes.Os tiros da esquerda do PS acabaram por atingir Jorge Lacão e obrigaram Guterres a recorrer a Francisco Assis, um jovem guterrista que passou a gerir os protagonismos da bancada socialista. E a aguentar as ondas de choque provocadas pela insistência do líder da JS, Sérgio Sousa Pinto, em debater "questões fracturantes", como a despenalização do aborto, o reconhecimento de direitos às uniões de facto hetero e homossexuais e até a descriminalização do consumo de drogas - assunto em que Eurico de Figueiredo foi pioneiro.Com o país político acostumado às "excentricidades" parlamentares dos socialistas e descoberta a fórmula de as anestesiar internamente, por um lado, e, por outro, adquirida a técnica de trazer as várias oposições à mão, consoante os ventos, Guterres chegou ao fim do mandato com o direito ao título de mestre na arte de bem navegar à bolina nos mares conturbados de uma maioria relativa.

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