Gore Vidal, o senador das letras americanas

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Gore Vidal na sua casa em Itália; na campanha do Partido Democrata, em 1960; e em Los Angeles, em 1981 Jonathan Blair/CORBIS

Conhecido pelas suas críticas à política americana e admirado pelo seu ensaísmo e pela sua vasta obra de ficcionista, Gore Vidal era o provocador mais irónico e aristocrático da esquerda americana. Morreu ontem, aos 86 anos

Romancista, dramaturgo, ensaísta, crítico literário, argumentista, político, actor, Gore Vidal morreu terça-feira em Hollywood, de complicações resultantes de uma pneumonia. Tinha 86 anos e deixa 24 romances, várias peças de teatro, centenas de ensaios e dois livros de memórias. Esta dispersão do seu talento por inúmeros géneros pode ter prejudicado o seu reconhecimento como grande romancista. O poeta inglês Stephen Spender foi o primeiro a sugerir que o melhor Vidal era o ensaísta, juízo que se tornaria consensual na crítica americana, mas que o próprio não subscrevia. "Os meus romances são tão bons como os meus ensaios, mas, infelizmente, para se saber se um romance é bom, é preciso primeiro lê-lo."

Essa diversidade revela-se, de resto, no interior da sua própria obra de ficção, tornando-o um romancista difícil de catalogar. O escândalo provocado pelo seu terceiro romance, A Cidade e o Pilar (1948), no qual a homossexualidade era abordada com uma crueza sem precedentes na literatura americana, trouxe-lhe notoriedade. Mas Vidal não explorou o filão e, em 1964, publica a biografia romanceada do imperador apóstata Juliano, que se tornou um best-seller. Três anos mais tarde sai Washington, D.C., o primeiro de uma série de sete romances que lidam com a história dos EUA. Mas não quis limitar-se ao romance histórico e, em 1968, publica Myra Beckenridge, uma desvairada sátira protagonizada por uma transexual, que virá a ter uma sequela em 1974, com Myron.

Homossexual, ainda que se lhe conheçam alguns ocasionais envolvimentos com mulheres - uma delas terá sido a actriz Joanne Woodward -, Gore Vidal nasceu na deveras máscula Academia de West Point, onde o seu pai, Eugene Vidal, era então instrutor de aeronáutica. A mãe, Nina Gore, divorciou-se de Eugene Vidal em 1935 e casou-se com Hugh Auchincloss, que veio depois a ser padrasto de Jacqueline Kennedy. Nina Gore era filha de Thomas Gore, o primeiro senador do Oklahoma, e também o primeiro cego a chegar ao Senado. Este avô materno foi uma influência determinante na adolescência do escritor, transmitindo-lhe um duradouro interesse pela política.

O apelo da política

Vidal chegou mesmo a ponderar seguir uma carreira política. Em 1960, candidatou-se ao Congresso e teve a seu lado, na campanha, o próprio John F. Kennedy, então candidato democrata à Presidência. Vidal perdeu e só fez uma nova tentativa em 1982, desta vez candidatando-se nas primárias do Partido Democrático, a senador pela Califórnia. Ficou em segundo entre dez candidatos.

Célebre pela sua erudição e respeitado como um dos grandes intelectuais americanos do nosso tempo, nunca fez estudos superiores. Quando terminou o liceu, ingressou no Exército e combateu na Segunda Guerra. Uma experiência que usará no seu primeiro romance, Williwaw, publicado em 1946, aos 20 anos. Uma estreia bem recebida, que o convenceu a tornar-se escritor. Fez então uma viagem à Guatemala, onde conviveu com Anaïs Nin, que, nos seus diários, dirá que teve um caso com ele, versão que Vidal sempre desmentiu.

A Cidade e o Pilar, dedicado a J.T. - iniciais de Jimmy Tremble, uma estrela do baseball que morreu em Iwo Jima e que foi, garantirá Vidal, o único amor da sua vida -, representa um momento de viragem. Se o livro lhe trouxe notoriedade, também lhe valeu a acrimónia de muitos críticos: Orville Prescott, do New York Times, recusou-se a recensear a obra e terá conseguido que o jornal ignorasse os seus romances seguintes.

Antes dos grandes sucessos dos anos 1960 - Juliano, Washington, D.C. e Myra Breckenbridge -, a sua carreira atravessou momentos difíceis e, para compor as finanças, publicou três lucrativos romances policiais na primeira metade dos anos 50, usando o pseudónimo Edgar Box.

Escreveu também várias peças que tiveram êxito na Broadway e argumentos para filmes (ver texto ao lado). Norman Mailer foi integrado por Vidal no grupo dos "irmãos chauvinistas", ao lado de Henry Miller e Charles Manson, o assassino de Sharon Tate. A Truman Capote, desprezava-o "como a um animal sujo que arranjou maneira de entrar em nossas casas". E embora reconhecesse que Hemingway o enfeitiçou na juventude, chamou-lhe "mestre da autopublicidade".

Em 1950, conhece Howard Austen, que irá ser o seu companheiro de toda a vida. Instalaram-se nos anos 1960 em Roma - entre os vários papéis de Vidal no cinema, conta-se uma aparição em Roma de Fellini -, e só após a morte de Austen, em 2003, é que se estabeleceu em Hollywood.

Figura de referência da esquerda americana, Vidal foi um crítico cáustico de sucessivos presidentes, de Franklin Roosevelt, que acusava de ter provocado deliberadamente o ataque a Pearl Harbor, passando por Reagan, a quem chamou "um triunfo da arte de embalsamar", até George W. Bush, "o homem mais estúpido dos Estados Unidos". Nem o seu amigo John F. Kennedy escapou. Entrevistado pelo PÚBLICO em 1998, aquando de uma sua passagem pela Gulbenkian, afirmou ao jornalista João Carlos Silva que Kennedy "andava à procura de uma guerra" e criticou-o pela invasão de Cuba e pelo conflito do Vietname.

Ironista de perfil aristocrático, Vidal nunca se envolveu, todavia, com os movimentos de contracultura dos anos 1960, que achava "entediantes". Mas foi um provocador radical: correspondeu-se com Timothy McVeigh, autor do massacre de Oklahoma, considerando-o "um nobre rapaz", chocou muitos americanos ao dizer que se "estava nas tintas" para as acusações de pedofilia a Polanski, e, logo a seguir ao 11 de Setembro, escreveu um artigo (O Fim da Liberdade) ferozmente crítico da administração americana, que a Vanity Fair se recusou a publicar.

Na política, só pelo casal Clinton mostrou ter algum apreço. Quando o procurador Kenneth Starr quis saber se Bill Clinton tivera sexo com Monica Lewinsky, Vidal comentou que se "uma pergunta tão irrelevante" tivesse sido colocada a George Washington ou Lincoln, o primeiro teria "varado Starr com a sua espada", e o segundo tê-lo-ia "atirado da janela".

Na entrevista de 1998 ao PÚBLICO disse que os EUA não têm hoje um sistema bipartidário, mas apenas o "Partido da Propriedade, da Riqueza, das Corporações", e terminou com este voto: "Talvez a raça humana seja apenas uma coisa passageira e desapareça ao fim de algum tempo... isto para acabar com uma nota feliz."

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