Um rei generoso

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Xavier Le Roy, o maestro-bailarino vincent cavaroc

Marca centenária de uma ruptura excepcional na história da dança e da música, a Sagração da Primavera composta por Stravinksy para uma coreografia de Nijinsky, tem sido consagrada em ambos os universos artísticos com inúmeras interpretações. Neste panorama a proposta do intérprete-criador Xavier Le Roy inova e surpreende conceptualmente porque destaca a fusão de dança e música num único corpo criando a figura do maestro-bailarino.A dois metros da plateia, sob uma luz branca incandescente, Le Roy discorre com impecável precisão e concentração uma complexa coreografia que, por um lado, conduz perfeitamente a audição da partitura, fazendo compreender o papel dos instrumentos na intricada variação de ritmos e dinâmicas e, por outro lado, exprime nitidamente sensações de vitalidade, densidade, subtileza e mistério que são qualidades conhecidas da obra obstinada e infernal de Stravinksy.
O bailarino desenvolve um vocabulário abstracto de gestos e movimentos organizados que ampliam o impacto da música no corpo que a dirige: imobiliza-se numa postura para se ver apenas o pequeno oscilar repetido de uma mão; absorve essa oscilação projectando tronco e braços em grandes linhas curvas de um lado para outro; transforma acentos de mão compulsivos (para pontuar pausas e rompantes), em pontapés e murros furiosos ou saltos leves e deleitados. Esta interpretação coreográfica, tão própria e necessária para se afirmar uma posição original do autor no contexto artístico contemporâneo é, no entanto, sempre coerente com a posição de maestro que em momento algum é abandonada.
A dança orquestradora dirige-se ao público de forma inequívoca e, com expressões faciais genuínas de comando, aprovação e cumplicidade, cheio de determinação, humor e entusiasmo, Le Roy convoca cada espectador a fazer parte do ritual. Nesta relação, surgem apontamentos dramatúrgicos que introduzem surpresas e acentuam o domínio do coreógrafo sobre a peça que criou e a sua profundidade. Acrescentando um trabalho minucioso de engenharia sonora, todos os elementos combinam para proporcionar uma sensação de acontecimento autêntico onde a música gravada parece ganhar vida naquele momento.
Uma ilusão possível, curiosa e inebriante que demonstra uma grande generosidade do autor-director cujo papel é, afinal, o de facultar uma fruição intensa da obra prima musical de referência, sublinhar a beleza sublime do encontro de movimento e som no corpo do maestro e, permitir que uma dança de emoções aconteça dentro de cada indivíduo perante a sua actuação. Uma proposta arriscada e bastante vulnerável à reacção do público durante todo o espectáculo (que se deixa ou não convencer) e, à empatia que se possa já ter ou criar ali com a peça do compositor. Termina hoje no Teatro Maria Matos em Lisboa, às 21h30.

Paula Varanda

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