Torre do Tombo mostra documentos inéditos sobre o Tarrafal e a Guerra Civil de Espanha

Faz amanhã 70 anos que chegaram ao Tarrafal, na ilha de Santiago, os primeiros presos. Uma colónia penal feita para "criminosos políticos, especialmente perigosos", lê-se num documento em exposição na Torre do Tombo. O arquivo aproveitou o momento para pôr muita documentação on-line. Por Isabel Salema

Há coisas como uma biografia inédita de Salazar em 36 volumes ou o relatório do comandante do navio Niassa que mostra que o Estado Novo entregou 1500 espanhóis "marxistas" aos republicanos. São algumas descobertas ou surpresas da exposição 1936 - 70 Anos Depois, Memória e História: Tarrafal e Guerra Civil de Espanha, ontem inaugurada no Instituto dos Arquivos Nacionais Torre do Tombo (IAN/TT).Mas o termo descoberta não é do agrado do director do IAN/TT, Silvestre Lacerda, que encontrou o relatório na Biblioteca Central da Marinha - Arquivo Histórico: "Eu não descubro nada. Eu só encontro. Os documentos estão lá disponíveis. O que estamos a fazer é referenciar documentos, valorizá-los para poderem ser utilizados pelos investigadores, para ficarem disponíveis para as descobertas."
A exposição é também o momento para a Torre do Tombo anunciar que está on-line toda a documentação sobre a colónia penal, mas também o primeiro livro do Registo Geral de Presos da PIDE/DGS (a polícia política), as famosas Memórias Paroquiais de 1758, o inquérito aos párocos pós-terramoto, essencial para a história das freguesias portuguesas. "São dos documentos mais pedidos na Torre do Tombo. A exposição é um pretexto para tornar os arquivos da casa mais disponíveis", diz Lacerda, acrescentando que estes conjuntos digitalizados juntam-se aos primeiros que, no ano passado, ficaram disponíveis na Internet.
O Tarrafal e a Guerra Civil de Espanha foram juntos na mesma exposição porque 1936 é para ambos o primeiro ano. A colónia penal não foi criada por causa da guerra civil, nem foram encontrados presos espanhóis no campo de concentração de Cabo Verde. "O único ponto em comum dos dois temas é terem acontecido no ano de 1936", diz a historiadora Fátima Patriarca e coordenadora científica da exposição, explicando que não há entre eles qualquer relação de causalidade. Isso não quer dizer que entre os primeiros presos que chegaram ao Tarrafal a 29 de Outubro de 1936 não estejam 11 homens expulsos de Espanha - portugueses - acusados de serem extremistas e de terem participado no movimento considerado revolucionário. Faz amanhã exactamente 70 anos que o navio Loanda chegou à ilha de Santiago com 158 presos e 54 militares e guardas.

A sobrelotação das cadeias portuguesas"O Aljube, cadeia privativa da polícia, tem a sua lotação esgotada. As esquadras da Polícia de Segurança Pública têm todos os seus calabouços ocupados e já não podem receber mais presos da Polícia de Vigilância e Segurança do Estado (PVDE)", escreve a 2 de Abril, num ofício confidencial, o director da polícia PVDE (a polícia política), Agostinho Lourenço, alertando o ministro do Interior, Henrique Linhares de Lima, para a necessidade de criar uma nova cadeia para presos políticos e sociais devido à sobrelotação das cadeias. Este é um dos inéditos da exposição.
No mês seguinte, num documento do Ministério do Interior, também confidencial, diz-se mesmo que é difícil à PVDE fazer "a repressão da acção revolucionária por não ter onde alojar os presos, o que representa um grave perigo para a ordem pública". O documento não consta da exposição, porque Fátima Patriarca já o encontrou demasiado tarde para o incluir no guião.
O número excessivo de presos era um problema antigo, mas foi agravado pelas prisões decorrentes de uma série de acontecimentos: a greve geral revolucionária de Janeiro de 1934, a conspiração frustrada contra o presidente do Conselho, António de Oliveira Salazar, de 10 de Setembro, o motim da Madeira em Agosto de 1936 e a revolta comunista, em Setembro do mesmo ano, em três navios da Armada, de marinheiros que se queriam juntar aos republicanos espanhóis.

O sequestro do comandante
"Ao alvorecer de ontem, sublevaram-se criminosamente a bordo do Afonso de Albuquerque e do Dão algumas praças da Armada, conjuntamente com outros elementos suspeitos, a fim de se juntarem aos marxistas espanhóis", escreve a 9 de Setembro de 1936 o jornal O Século, sobre a revolta comunista da Armada. Também inédito é o diário de bordo do comandante do navio Afonso de Albuquerque, que descreve a revolta dos marinheiros. António Marques Esparteiro escreve numa letra miudinha o episódio do seu sequestro: "Desistiram da ideia de me obrigar a segui-los e deixaram-me fechado no camarote com sentinela à porta. Enquanto estiveram comigo, tentei convencê-los a bem, de desistir daqueles propósitos revolucionários, fazendo-lhes ver que ficariam perdidos."

Tarrafal com anteprojecto em 1935O primeiro passo para a construção da colónia penal em Cabo Verde é visível com um pedido de autorização, a 7 de Agosto de 1934, para o capitão de engenharia Luís Victória de França e Sousa se deslocar ao arquipélago para recolher elementos necessários à instalação de um presídio. O pedido é para ir à ilha da Boavista e não à de Santiago, onde o Tarrafal será construído. Na exposição é possível recuar até 1932 a necessidade de fazer uma colónia penal em Cabo Verde. Em 1934, fala-se na foz do rio Cunene, em Angola.
"A Colónia Penal do Tarrafal começa a ser estudada em 1934", diz Fátima Patriarca. É projectada em 1935, estando na exposição o relatório, também inédito, do anteprojecto, assinado pelo capitão França e Sousa, de uma colónia penal no Tarrafal de Santiago. Está também lá a entrada a 31 de Março de 1936 no diário de Salazar de uma reunião com vários ministros sobre "presos políticos, Colónia Penal de Cabo Verde - outras providências de vigilância por causa da situação espanhola". No dia 8 do mesmo mês, Salazar inclui uma referência sobre os despachos do Tarrafal. O Decreto-lei nº 26.539 cria a 23 de Abril de 1936 uma colónia penal para presos políticos e sociais no Tarrafal, da Ilha de Santiago, no arquipélago de Cabo Verde.
Criminologista de Coimbra dá pareceres sobre presídio
O director do Centro de Criminologia da Universidade de Coimbra, José Beleza dos Santos, dá dois pareceres, que não estão datados, sobre o Tarrafal. Um deles é sobre os fins e o tipo de delinquentes a que se deveria destinar a colónia penal do Ultramar: é para "criminosos políticos, especialmente perigosos", que podem "praticar actos gravíssimos sob o domínio do seu fanatismo ou exaltação política". Mas o afastamento da metrópole de delinquentes geralmente "ainda novos" pode transformá-los "em elementos úteis socialmente adaptados". Ao clássico desterro para Angola, Moçambique, Guiné, Timor e Macau, em regime aberto mas vigiado, vem juntar-se a nova figura da colónia penitenciária fechada, numa ilha distante do continente, destinada aos presos que mais conspiram contra o regime. "O Tarrafal é a primeira e única colónia penal fechada destinada aos presos sociais e políticos idos do continente", diz Fátima Patriarca.

Os primeiros presos vão no vapor "Loanda"
Um dos documentos da exposição, é o relatório do comandante do navio Loanda que transportou os primeiros presos políticos para o Tarrafal, assinado pelo capitão-tenente Augusto Soares de Oliveira. "O relatório tem o mapa da rota do navio e o relato da viagem. Quantos mantimentos, quem ia... O comandante faz referência à falta de condições em que os presos vão ser instalados", diz Lacerda.
O vapor parte a 17 de Outubro de 1936 com 117 presos e 54 elementos das forças de segurança e serviços prisionais. Faz escala no Funchal e Angra do Heroísmo, onde saem e entram presos. A 29 de Outubro, o Loanda chega ao Tarrafal com 158 deportados: 79 são dirigentes e militantes de várias tendências ligadas à greve de Janeiro de 1934 (estavam em Angra); 34 são marinheiros da organização comunista da Armada; cerca de outros 30 são tidos por "comunistas" e "extremistas" e participaram na jornada de agitação de 29 de Fevereiro de 1935; 11 tinham sido expulsos ou extraditados pela polícia espanhola. Dos 158, morreram 21, por doença, entre 1937 e 1948, segundo Fátima Patriarca. A historiadora Irene Pimentel, participante no colóquio paralelo à exposição e que investiga a polícia política entre 1945 e 1974, diz que não há provas de mortes provocadas: "As 32 pessoas que morreram no Tarrafal entre 1936 e finais de 1953, a primeira fase do campo, foi de doença." O campo do Tarrafal teve duas fases portuguesas: a "europeia" (1936-53) e outra "africana" (1961-74), destinada a militantes dos movimentos anti-coloniais.

"Gracias", Rádio Clube PortuguêsUm dos sons que se vai ouvir na exposição é a voz do general Millán Astray, agradecendo o apoio de Portugal na causa dos nacionalistas durante a Guerra Civil de Espanha: "Gracias, Portugal, por la mano franca con que nos abriste la puerta y nos tendiste tu amistad..." A guerra, que durou até 1939, opôs nacionalistas e republicanos, grupos que juntavam, dentro de si, facções muito variadas, de monárquicos a falangistas, de republicanos moderados a anarquistas. Os resultados das eleições de Fevereiro de 1936, que deram a vitória inesperada à Frente Popular (republicanos), polarizaram a sociedade espanhola. Com o golpe de Estado dos nacionalistas em Julho, o conflito transforma-se em guerra e generaliza-se. Os livros de honra da Emissora Nacional e do Rádio Clube Português (RCP) mostram que o general Astray foi um dos muitos nacionalistas que vieram, gratos, a Lisboa. O RCP era, durante a guerra, uma das poucas fontes de informação para Espanha, transmitindo regularmente notícias sobre os combates e contrariando as estações de rádio controladas pelos republicanos. No RCP, foi montado um serviço permanente de escutas, em que participava, por exemplo, Jorge Botelho Moniz, director da rádio.
Na exposição está a acta da reunião da direcção do RCP, de 19 de Julho de 1936, onde se decide, por unanimidade, o apoio aos nacionalistas espanhóis. Botelho Moniz, capitão do Exército, criou mesmo o corpo de combatentes conhecidos como Os Viriatos que participam na Guerra Civil de Espanha ao lado dos nacionalistas. O director do IAN/TT diz que o arquivo do RCP mostra "uma triangulação fabulosa" entre Botelho Moniz, os Viriatos e a empresa CUF. Depois do regresso dos voluntários a Portugal, é criada a Liga dos Ex-Combatentes Voluntários da Guerra de Espanha e Botelho Moniz, também assessor da CUF, trata da integração de alguns Viriatos.

Portugal entrega refugiados "marxistas" a republicanosOutro dos relatórios curiosos é o do capitão do vapor Niassa, de 13 de Outubro de 1936, encontrado na Biblioteca Central da Marinha - Arquivo Histórico. O barco tem como missão o transporte de refugiados espanhóis "marxistas", pago pelo governo português, para Tarragona, um porto escolhido pelo governo espanhol republicano. "Fiquei espantada com isto, porque sempre se disse que Portugal tinha entregue os refugiados republicanos aos nacionalistas. Há cerca de 1500 refugiados republicanos que são entregues em Tarragona por acordo entre o Governo português e o Governo legítimo de Madrid, que é republicano", diz Fátima Patriarca.

O método de "fuzilamento geral" dos falangistasSe a Missão Militar Portuguesa de Observação em Espanha é criada em Março de 1937, chega a Salazar muita informação recolhida em Espanha no primeiro ano da guerra. No seu arquivo, está um relatório de 13 de Novembro de 1936, em que são caracterizadas as famílias políticas de direita. Sobre a Falange, a mais numerosa, diz que matam indiscriminadamente: "O método de fuzilamento geral de todos os inimigos políticos reconhece-se só agora que não pode ser seguido à risca. [...] Não podem fuzilar a tantas dezenas de milhares."

Biografia de Salazar em 36 volumes
O vigésimo terceiro volume de uma biografia manuscrita de Salazar está aberto na página onde se vê uma fotografia do presidente do Conselho a discursar no Terreiro do Paço. Salazar agradece a manifestação do povo de Lisboa, apoiando o corte de relações diplomáticas com o Governo republicano espanhol a 23 de Outubro de 1936.
A biografia é feita pelo engenheiro Frederico Quadros de Abragão e tem 36 volumes. "É uma biografia exaustiva de Salazar que está na Torre do Tombo, completamente inédita, e que era para ser publicada pelo Secretariado Nacional de Informação. Não está citada em lado nenhum", observa Lacerda.

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