O ADN devolveu a coroa a Luís XVII

Um dos mistérios mais longos e mais apaixonantes da História de França foi resolvido: afinal, a criança que morreu em cativeiro na prisão do Templo era mesmo o herdeiro de Luís XVI e Maria Antonieta. Dois investigadores compararam o coração da criança com os cabelos da mãe. É caso para dizer que o ADN devolveu a coroa a Luís XVII.

As enciclopédias já o afirmavam categoricamente, mas a confirmação só chegou há dois dias: afinal, a criança de dez anos que morreu em cativeiro na prisão do Templo, em Paris, em 1795, era mesmo o herdeiro do trono de França, Luís XVII, segundo filho de Luís XVI e Maria Antonieta. Duzentos anos, 800 livros e quatro meses de investigação genética puseram fim a um dos mais persistentes mistérios da História francesa: a crença de que o verdadeiro Luís XVII teria escapado ao cativeiro e gerado uma prole de herdeiros que poderiam reclamar a coroa de França. E que o corpo autopsiado (vítima de tuberculose) por um médico do Reino, Philippe-Jean Pelletan, pertencia, na verdade, a uma outra criança que o substituíra. Dois investigadores europeus - Jean-Jacques Cassiman, da Universidade de Lovaina (Bélgica), e Ernst Brinckmann, da Universidade de Münster (Alemanha) - desfizeram anteontem as dúvidas, ao anunciar os resultados das análises efectuadas ao coração da criança do Templo, comprovando que pertencia a Luís XVII.Sim, é verdade, a legítima casa de Orléans pode respirar de alívio, sem o receio de que um familiar desconhecido da América venha reclamar a pretensão ao trono - foram várias as vozes (43, mais precisamente) que, no século XIX, invocavam ser o delfim, desde um missionário de índios americanos a um relojoeiro prussiano, Wilhelm Naundorff, o mais famoso dos pretendentes, cuja campa mereceu mesmo a inscrição: "Aqui jaz Luís XVII, duque de Normandia, rei de França e Navarra." Os argumentos de Naundorff foram suficientemente convincentes que submetê-lo aos testes de ADN em 1950, que comprovaram a inexistência de sangue azul nas suas veias. Não obstante, os seus herdeiros actuais continuam a poder fazer uso do nome de Bourbon.Quanto ao verdadeiro Luís XVII, os testes foram realizados separadamente, na Bélgica e na Alemanha, nos últimos quatro meses, partindo de fragmentos do músculo cardíaco e da aorta, que se compararam ao ADN da família materna da criança, retirado dos cabelos de Maria Antonieta (encontrados num medalhão) e das suas irmãs Joana Gabriela e Maria José, bem como de amostras sanguíneas de descendentes familiares actuais, como a rainha Ana da Roménia e seu irmão, o príncipe André de Bourbon. Teste duplamente positivo: coração, cabelos e sangue são todos frutos da mesma árvore genealógica.Preservado numa urna de cristal na Basílica de Saint-Denis, em Paris, o coração de Luís XVII tem, ele próprio, uma história atribulada de 200 anos: durante a autópsia, o médico Pelletan não resistiu em extrair o órgão, levando-o consigo no bolso, enquanto o resto do corpo era atirado para uma vala comum. Conservado em álcool, pilhado por um estudante de medicina que mais tarde, no leito da morte, o restituiu, o coração foi oferecido a Luís XVIII, irmão de Luís XVI, que o rejeitou, temendo pela sua legitimidade no trono. Confiado ao arcebispado de Paris, o coração é alvo de uma pilhagem, em 1830: o filho do doutor Pelletan tenta resgatar o frasco de álcool, mas um guarda mais escrupuloso defende-o com um golpe de sabre. Pelletan regressa numa noite de tempestade e encontra o órgão sobre um monte de areia. Remete-o para os Bourbons de Espanha, que o devolvem em 1975, seguindo para Saint-Denis. Actualmente, o coração está mumificado, mas os investigadores conseguiram extrair quatro amostras, a partir das quais isolaram e identificaram o código genético. Duplo triunfo: em primeiro lugar, histórico, deitando por terra inúmeras biografias e especulações com títulos detectivescos como "Na Pista de Luís XVII" ou "O Enigma do Menino do Templo"; mas também científico, porque, pela primeira vez, a infalibilidade dos testes de ADN inscrevem a sua marca na História de França. "É um grande dia para os historiadores", assegurou Philippe Delorme, escritor, historiador e orientador da investigação, durante a apresentação das conclusões no Museu de História da Medicina de Paris, que contou com a presença de Luís Afonso, chefe da casa de Bourbon. Este manifestou vontade de intervir junto das autoridades francesas no sentido de depor o coração de Luís XVII na cripta real, junto dos túmulos dos seus pais. Para Delorme, a descoberta (ou antes: a confirmação) é também uma questão de justiça. "Estamos finalmente a fazer justiça para com esta criança. Até agora, a sua morte não tinha sido reconhecida, não se julgava que tivesse morrido de forma tão horrível."Luís XVII tinha oito anos quando se tornou rei de França, depois do seu pai morrer publicamente na guilhotina em 1793, no rescaldo da Revolução Francesa. Nunca chegou a sentar-se no trono, porém: foi separado da sua mãe e levado para prisão do Templo, de forma a desanimar qualquer reivindicação monárquica. Diz-se que foi posto ao cuidado de um rude sapateiro, chamado Simon, suspeito de forçar o pequeno rei a assinar uma declaração acusando a sua mãe de incesto. O documento foi apresentado durante o julgamento de Maria Antonieta, que foi executada pouco depois. A saúde de Luís XVII agravou-se em Maio de 1795, vindo a falecer, com tuberculose, a 8 de Junho.

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