Godot por Luc Bondy

"À Espera de Godot" é não só o mais emblemático exemplo do universo becketiano como a peça do reportório contemporâneo mais representada em todo o mundo. Luc Bondy, um dos mais conhecidos encenadores a trabalhar em França, traz a Portugal a sua encenação deste monumento do teatro do século XX. Um trabalho em risco de derrapagem.

Luc Bondy é um dos mais conhecidos encenadores a trabalhar em França. Assinou encenações históricas tanto de Shakespeare, Muset e Goethe como de Peter Handke e Botho Strauss. No entanto, isso nunca o impediu de ter medo. Sempre teve medo, especialmente de encenar Beckett. Porque "é um género de teatro em que o risco de derrapagem é constante", afirma. "O que fazer para mostrar que estão em cena resíduos de humanidade sem chegar à f+bignomíniaf-b? É por isso que hesitei durante muito tempo", explicou numa entrevista. Mas, finalmente, aceitou o desafio.A sua primeira incursão pelo universo do mítico autor irlandês foi precisamente com "À Espera de Godot"- em estreia hoje no Rivoli Teatro Municipal, no Porto (e no CCB, em Lisboa dias 14 e 15) -, não só o mais emblemático exemplo do universo becketiano como a peça do reportório contemporâneo mais representada em todo o mundo. E prova que os assombramentos iniciais nem sempre têm que ser superados. Por que não transformá-los antes num terreno a habitar? Aliás, essa sensação de permanente derrapagem, assombramento primeiro de Bondy, não será mesmo um dos aspectos fundamentais do próprio texto da peça? Sobre esse edifício de palavras, ecos, simetrais e tonalidades que Beckett construiu à volta de uma humanidade em ruínas - "restos de homens que comem restos de legumes em restos de situações", nas palavras de Bondy - não vale a pena entrar em grandes explicações. Por um lado porque tentar sistematicamente defini-lo como "a história de dois tipos à espera de um terceiro que nunca aparece" se tornou numa banalização extremamente redutora do complexo conteúdo dramático e filosófico da peça; por outro porque desde que Roger Blin a encenou pela primeira vez em Berlim, em 1953, esta se tornou numa das tramas mais conhecidas do mundo, final incluído. Bastará saber que Luc Bondy respeitou integralmente o texto revisto e aprovado pelo próprio Beckett para essa primeira encenação. "É respeitando-o que se pode reactivar a execução, a orquestração. Mas sem se deixar cair na ratoeira das metáforas musicais. Antes de tudo, é preciso encontrar o tom ajustado a cada um. Não acredito na música becketiana", explica Bondy. Por isso a sua opção acabou por ser deixar que a peça, entregue ao "cast" - que conta com dois dos mais carismáticos actores da cena teatral francesa, Gérard Desarthe e François Chattot, respectivamente no papel de Lucky e Pozzo -, produzisse os seus próprios simtomas. "Completamente ao contrário dos cáculos infinitos do Beckett encenador", afirma.Bondy empurrou os seus actores para uma espécie de terra-de-ninguém, deixando-os muitas vezes vezes avançar sozinhos por bastante tempo com apenas uma indicação: imaginarem estar em digressão, por salas vazias do interior do país e terem, mesmo assim, que continuar a representar. Apesar desta metodologia, a ideia inicial de derrapagem - porque Beckett viu a humanidade em constante perigo de resvalamento entre a realidade e o sonho, a sanidade e a loucura, a apatia e a euforia ou o abandono e a procura, a incoerência e a coerência, a poesia e o realismo - acabou por se revelar através de um artifício simples: um palco em declive rude, belíssimo cenário de Gilles Aillaud. Azuis, pálidos ou acinzentados, ocres claros e brancos; uma árvore despida, toda nua e preta, e uma estrada que sobe e desaparece lá em cima, pelo meio do gelo e da neve - o silêncio e o despojamento, princípios caros a Beckett (prolongados na dança de Lucky, no final do primeiro acto, coreografada pela norte-americana Lucinda Childs, um dos nomes marcantes do minimalismo dos anos 70)."Queria um terreno difícil", explica Bondy. Encontrou-o num livro, "A Irlanda de Beckett". "Uma estrada toda em curvas. Isto pareceu-me fazer parte da experiência dele. Um caminho muito íngreme." Até porque para Bondy, ao contrário de ser uma anti-peça ou uma obra amnésica, "À Espera de Godot" carrega em si o peso de uma complexa relação com a tradição do teatro e da cultura. "É um mundo em ruínas, uma cultura feita de migalhas, maltrata-se a arquitectura tradicional do teatro", mas "À Espera de Godot" tem uma memória esquecida, "faz lembrar Shakespeare, claro, e pisca também o olho ao music-hall. Faz pensar nos irlandeses Sinnge, O'Casey, Behan, quanto à atmosfera e sobretudo ao humor" e "são extraordinários os laços com Tchekov". Mas em Beckett não há esperança. Como sublinha Bondy "ele sentiu a dificuldades do que se passa connosco entre o começo e o fim". Será o que os seus actores deverão encontrar em palco.

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