Fernando Calhau A voz interior numa exposição a dois tempos

É a primeira exposição dedicada ao espólio que a viúva de Fernando Calhau doou há dois anos à Gulbenkian. Convocação, que hoje é inaugurada, centra-se no desenho, o corpo mais vasto mas também menos conhecido da obra do artista. "O desenho é a base, o chão de todas as coisas na obra do Calhau", diz o comissário da mostra. Por Vanessa Rato (texto) e Daniel Rocha (fotos)

Há cinco anos, quando organizaram para a Gulbenkian a antológica Work in Progress, o artista Fernando Calhau e o comissário Delfim Sardo centraram-se na pintura, escultura, fotografia, gravura e filmes que o artista realizara a partir de meados dos anos 1960. O desenho, a que Calhau dedicava prática quotidiana mas que expusera apenas nos anos 80, foi deixado de fora. "Foi deliberado", explicou na altura o artista. "Tenho desenhado muito, desde o princípio. Tanto que achámos que o melhor era deixar isso para outra ocasião."
Fernando Calhau morreu aos 54 anos, menos de um ano depois da inauguração de Work in Progress, deixando a mais vasta fatia da sua produção plástica quase integralmente por conhecer. Convocação, a exposição que a Gulbenkian inaugura hoje, centra-se nesse corpo de trabalho. É o reverso da medalha de Work in Progress.
"Acho que com Work in Progress se contextualizou a obra do Fernando Calhau, deu-se a sua exterioridade, os seus limites", diz Nuno Faria, assessor de Belas-Artes da Gulbenkian e comissário de Convocação. Work in Progress era "a exposição que tinha que ser feita" numa altura em que poucos conheciam a obra de Calhau em extensão, "agora tinha que se fazer outro tipo de reflexão".
Próximo de Calhau, de quem foi braço direito durante vários anos à frente do Instituto de Arte Contemporânea - hoje Instituto das Artes -, Nuno Faria diz que se interessou desde logo por "encontrar uma voz interior, as junções e articulações constantes" na obra do artista: "Quis propor uma visão mais interior. Entender como é que durante tantos anos a sua obra manteve uma coerência tão grande a tantos níveis. O desenho é essencial para fazer isso. O desenho é a base, o chão de todas as coisas na obra do Calhau, com uma gama de soluções e maneiras de fazer e pensar enorme."
A exposição abre com Destruição, um filme de 1975. Inclui pintura e quatro das cinco últimas esculturas em aço e néon azul que o artista fez. Mas a respiração, a coluna dorsal assenta nos trabalhos sobre papel que acompanham os limites cronológicos da sua obra, desde trabalhos iniciais, da década de 60, aos últimos cinco desenhos negros, realizados em 2002. Muitos são inéditos.
É uma primeira aproximação ao espólio que a viúva do artista entregou há dois anos à Gulbenkian. Cândida Calhau doou à fundação tudo o que herdou - cerca de 500 obras naquela que é tida como a maior doação de arte contemporânea feita em Portugal. O desenho representará cerca de 60 por cento desse legado. Convocação, cujo título completo é Convocação I e II (modo menor e modo maior) - Obras no Acervo do CAMJAP, divide-se em duas partes, de forma a permitir um olhar mais abrangente sobre o trabalho do artista. Para além da montagem que hoje é inaugurada, há uma segunda, com novas obras, a abrir a 13 de Fevereiro.

"Dar a ver mais que mostrar"
Na primeira montagem, "começamos pelo fim", diz Nuno Faria, "começamos pelas peças finais". "A primeira montagem é mais atmosférica, mais ligada a questões imateriais, noções de infinitude e intemporalidade. A segunda montagem é mais ancorada ao chão. Introduzem-se os processos de reprodução mecânica como a fotografia e a gravura."
Segundo o comissário, na segunda montagem "o ambiente será mais exuberante", mas "tornará impossível não recordar a primeira, que é a que marca o tom". "Eu não pretendia expor ou mostrar. Pretendia criar uma experiência do ponto de vista perceptivo. Queria dar a ver mais que mostrar. Este é o ponto-chave da exposição", diz o comissário que convidou Pedro Tropa e Tomás Maia a conceber o espaço e a fazer um intervenção em vídeo.
Tanto o título da exposição como o conceito de montagem vêm de uma entrevista que Calhau deu para o catálogo de Work in Progress e em que fala sobre a natureza do seu trabalho: "Música de câmara, ou música sinfónica. São formatos musicais diferentes e com resultados diferentes. Os quadros pequenos, eu diria que são música de câmara, os quadros grandes são quadros sinfónicos."
Na sequência de salas, que se manterá nas duas montagens, espaços mais exíguos intercalam-se com espaços mais amplos. A temperatura dada através da iluminação acompanha a respiração das peças. Entre os trabalhos apresentados há inéditos de 2002 como as cinco últimas pinturas negras realizadas pelo artista - estão em diálogo com os últimos cinco desenhos, também negros. A série Passageiro Assediado, de 2001, está representada com metade dos 30 desenhos apresentados apenas uma vez. Incluem-se também cerca de 50 dos desenhos de registo diarístico que Calhau fazia todos os dias em pequenas folhas soltas e blocos - datam do período compreendido entre 1991 e 1993.
"O Fernando Calhau é um dos grandes desenhadores da arte portuguesa da segunda metade do século XX", dizia Delfim Sardo já este ano, ao comentar a doação de Cândida Calhau.

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