Cintra recebe primeiro Prémio Pessoa para teatro

Director da Cornucópia diz que
o prémio distingue também quem trabalha com ele há 30 anos

Luís Miguel Cintra ia "tentar" que ontem fosse um dia normal e cumprir a tabela de ensaios da próxima peça do Teatro da Cornucópia, A Gaivota, que se estreia em Março. "Se me deixarem...", disse ao telefone depois do anúncio de que o Prémio Pessoa, um dos mais importantes galardões portugueses, lhe tinha sido atribuído."Não posso pensar que o prémio me distingue a mim, mas uma série de pessoas que trabalham comigo há 30 anos", disse o encenador, actor, director da Cornucópia e o primeiro das artes do espectáculo a receber este prémio de 44 mil euros criado em 1987 que distingue anualmente uma personalidade portuguesa com "intervenção relevante" na vida científica, artística e literária. "A obra no teatro não é individual, é sempre colectiva", justificou.
Cintra, um dos mais admirados e respeitados encenadores e actores portugueses, confessou que os prémios o incomodam porque sempre sonhou "com uma maneira de viver sem hierarquias" e as distinções acabam por estabelecê-las, mas disse: "É evidente que me sinto muito lisonjeado e honrado. É importante no sentido que dignifica a actividade", colocando-a ao lado da ciência, das artes plásticas, da literatura, etc.
O júri do prémio, uma parceria entre o semanário Expresso e a Unisys e presidido por Francisco Pinto Balsemão, salientou o trabalho de Cintra na Cornucópia, onde "marcou uma presença de grande coerência no panorama cénico português, desde o rigor de fixação e/ou tradução dos textos, ao aparato crítico dos programas e à pesquisa no âmbito da cenografia e da representação". E acrescentou que o repertório do encenador abrange "as principais referências da literatura teatral de todos os tempos, dos clássicos aos contemporâneos, com uma atenção particular ao teatro português, nomeadamente a Gil Vicente".
O prémio chega num ano "muito cheio" para Cintra. Na Cornucópia dirigiu três peças sob um ciclo dedicado à desumanização na sociedade contemporânea: a encenação operática de Um Homem É Um Homem, de Bertolt Brecht, a cinematográfica A Cadeira, de Edward Bond, e a coreógrafica Sangue no Pescoço do Gato, de Rainer Fassbinder. Fora da Cornucópia dirigiu a ópera Medeia, no São Carlos, a peça Comedia Sem Título, de Federico Garcia Lorca, no Teatro de La Abadia, em Madrid, filmou Uno de los dos no puede estar equivocado, de Pablo Llorca, O Espelho Mágico, de Manoel de Oliveira, e está a filmar A Meu Favor, de Catarina Ruivo.

A Cornucópia é eleFoi na Faculdade de Letras de Lisboa, onde cursou Filologia Românica, que Luís Miguel Cintra começou a representar num grupo de teatro ao qual estava ligado o pai, Luís Filipe Lindley Cintra, uma das principais figuras da linguística portuguesa. Aqui subiu pela primeira vez ao palco por "um acaso", em Auto dos Físicos, de Gil Vicente, mas Anfitrião, de António José da Silva, em 1969, torna-se num dos marcos da história do teatro português.
Depois de concluir o curso foi para Inglaterra, para a escola de teatro Old Vic, em Bristol, onde passou dois anos. Até que fundou a Cornucópia em 1973 com Jorge Silva Melo e que hoje co-dirige com a cenógrafa e figurinista Cristina Reis.
A partir daqui não é possível falar de Cintra sem misturar o seu percurso com o da companhia. O próprio repete várias vezes que a sua vida se confunde com o teatro e que a Cornucópia é a sua família.
Fazer uma lista das dezenas de espectáculos que encenou seria enfadonho mas um espectador que tenha acompanhado o percurso da companhia terá uma boa ideia da história do teatro: Gil Vicente, Strindberg, Brecht, Strauss, Büchner, Müller, Pirandello, Shakespeare, Beckett, Tchékhov...
Cintra gosta de teatralidade e de entrar no pensamento de um autor. Tem em alerta o espírito crítico, questiona politicamente a sociedade e até responde a modas (como quando encenou a comédia Esopaida, do Judeu, recuperando a simplicidade do prazer de brincar, que considera fundamental no teatro).
Também por causa do seu papel como programador da companhia, foi várias vezes convidado para dirigir o Teatro Nacional D. Maria II - há mesmo quem diga que a Cornucópia é o Teatro Nacional.
Como encenador, tem dirigido não só actores de várias gerações como alguns dos melhores intérpretes do teatro português - de Glicínia Quartin a Manuela de Freitas, de Miguel Guilherme a Rita Blanco, de Beatriz Batarda a José Airosa. E como actor participou não só nos filmes de veteranos como Manoel de Oliveira, João César Monteiro e Luís Filipe Rocha, mas também dos jovens cineastas (ainda agora está a filmar com Catarina Ruivo). "O cinema para mim é muito mais duro, porque aquele momento de filmar o plano é definitivo", disse em entrevista ao PÚBLICO em 2002, onde falava também da dificuldade de ser dirigido no teatro. "Começo logo a pensar que faria de outra maneira... Talvez seja o hábito de estar nessa posição que me impede de me entregar completamente a outra pessoa. Mas se confio, então é a felicidade..."
Representar é "uma coisa absolutamente fantástica, insubstituível, extraordinária", acrescentou. "A sensação de plenitude, de alegria de estar em cena, de jogo, é insubstituível. É muito mais forte do que a vida. Porque tudo é exarcebado e é, ao mesmo tempo, completamente lúdico: tudo é verdadíssimo e nada é verdade. Ao mesmo tempo é completamente livre. É irresponsável, de certa maneira: quando se representa o papel, se tem determinado sentimento no palco, a gente sabe que no momento seguinte pode sair, acaba, deixa de ser verdade."
O escritor Mário Cláudio foi o último galardoado do Pessoa que já distinguiu o escritor José Cardoso Pires, o constitucionalista José Gomes Canotilho, o cientista Manuel Sobrinho Simões ou o director da Cinemateca Portuguesa João Bénard da Costa.

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