Bosch visto à lupa

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Os técnicos do Projecto Bosch no MNAA Nuno Ferreira Santos

Uma equipa internacional anda pelo mundo a ver em detalhe as 30 pinturas atribuídas a Bosch. Na semana passada, esteve no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa

Durante três dias, na semana passada, quem chegasse à sala da exposição Bosch e o seu Círculo, no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), em Lisboa, ia encontrá-la transformada numa espécie de acampamento de cientistas. Máquinas fotográficas, instrumentos de análise, computadores espalhados por cima das mesas, blocos de notas, livros, e várias pessoas debruçadas sobre as pinturas, iluminando com lanternas pormenores que nem imaginávamos que existissem e trocando informações sobre detalhes que, por muito que nos esforcemos, não conseguimos ver.

Esta é a equipa internacional do Bosch Research & Conservation Project, que tem andado a viajar pelo mundo para analisar cientificamente as cerca de trinta pinturas que são atribuídas a Jheronimus Bosch (1450-1516) - muitos outros trabalhos inicialmente atribuídos ao pintor holandês foram reavaliados ao longo do tempo e são hoje considerados obras da sua oficina, ou de seguidores que, mesmo depois da sua morte, continuavam a seguir o estilo do mestre.

É o caso dos dois quadros que estão actualmente a empréstimo no MNAA - o Tríptico do Juízo Final (primeira metade do século XVI, da oficina de Bosch), e Tríptico das Tribulações de Job, (segunda metade do século XVI, de um seguidor de Bosch), ambos do Museu Groninge, de Bruges, Bélgica. Mas o que os especialistas do Projecto Bosch vieram ver em primeiro lugar foi o Tríptico das Tentações de Santo Antão (c. 1500), a única das três pinturas que pertence ao MNAA, a única, também, que é considerada, sem margem para dúvidas, um trabalho do mestre.

E o que procuram os técnicos que fotografam e passam para os computadores os pequeníssimos detalhes de, por exemplo, a mão de Santo Antão? Não se esperam revelações extraordinárias, avisa Matthijs Ilsink, coordenador do projecto. O que se pretende é um levantamento o mais exaustivo possível das tais 30 obras identificadas como sendo de Bosch - um trabalho que deverá estar concluído em 2016, ano do quinto centenário da morte do pintor, e que deverá ser disponibilizado ao público a partir de uma base de dados e de um site. Haverá também uma exposição na cidade natal de Bosch, Hertogenbosch, na Holanda, cujo município está na origem de todo este projecto.

"O nosso objectivo não é tanto estudar a iconografia ou o simbolismo da obra de Bosch", explica Ilsink. "O que pretendemos é estudar a superfície da tela, os pigmentos, a forma como a tinta é aplicada, os desenhos preparatórios." Para isso usam a técnica de reflectografia com infravermelhos (para ver em profundidade o que não é visível à vista, ou seja, os desenhos iniciais, que em muitos casos Bosch corrigia depois profundamente, retirando ou acrescentando figuras).

Uma segunda técnica usada é a de fotografia com infravermelhos, que não vai tão profundamente na pintura, mas permite uma maior definição de imagem. E, por fim, a fotografia com a luz visível, que permite uma análise da superfície da tela. É o resultado destes três tipos de análise que Ilsink nos mostra agora no computador. Num pormenor de Cristo Carregando a Cruz (que se encontra em Gent, na Bélgica), a análise com infravermelhos permite ver perfeitamente a forma como Bosch alterou os narizes disformes de algumas das personagens, tornando-os maiores, ou reforçando os traços para distorcer ainda mais as expressões.

A pincelada de milímetros

Num outro quadro, São Jerónimo em Oração, também do museu de Gent, a fotografia de proximidade permite ver uma figura que a olho nu passaria totalmente despercebida: uma mulher que, ajoelhada ao pé de um rio, lava roupa, alguma da qual está a secar ao fundo, em cima da erva. Se olharmos para o fundo do quadro, vemos as montanhas, um rio, e até uma casa, mas a mulher é quase impossível de ver. E, no entanto, Bosch pintou-a com todo o cuidado, as mãos dentro de água, o corpo inclinado para a frente.

Uma das características de Bosch que esta equipa de especialistas tem encontrado - o MNAA é o quarto museu que visitam, o que significa que têm ainda muito trabalho pela frente - tem que ver com o traço do artista. Ilsink leva-nos até junto de uma das partes do tríptico de Santo Antão, para nos mostrar como no mais pequeno detalhe Bosch usa a pincelada. Pode ser um traço de milímetros, mas tem o movimento que associamos ao gesto do pintor - algo que, diz Ilsink, não acontece com os outros pintores da época, que têm um traço mais contido. "Bosch pinta de uma forma solta, rápida."

Curiosamente, no Tríptico do Juízo Final, quando olhamos com a ajuda de uma lanterna, encontramos o mesmo tipo de traço nas pequenas personagens fantásticas e diabólicas que povoam a obra de Bosch. Poderá o quadro ter tido também a participação do mestre? Não podemos afirmá-lo. Bosch morreu em 1516, a pintura é datada da primeira metade do século, o que não é conclusivo.

Joaquim Caetano, conservador do MNAA, que tem estado a apoiar a equipa do Projecto Bosch, explica que "existem cerca de quarenta documentos da época relativos ao Bosch e só um é sobre uma encomenda de uma pintura, os outros são documentos administrativos, pagamentos de impostos, por exemplo". Isto torna difícil perceber exactamente a dinâmica da sua oficina, o que é que saiu das mãos do mestre e o que é trabalho dos discípulos.

Caetano chama a atenção para a diferença da qualidade dos pigmentos usados e para a definição da imagem. No caso das cópias ou do trabalho dos seguidores, "quando nos aproximamos muito, começa-se a perder definição", o que não acontece quando a obra sai da mão de Bosch. São detalhes desta minúcia que um trabalho como o do Projecto Bosch vai permitir revelar - não apenas para os olhos dos especialistas, mas para os de toda a gente.

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