A arte de viver segundo Cindy Scrash

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Depois de Morrer como Um Homem, Cindy surge agora em A Última Vez Que Vi Macau ENRIC VIVES-RUBIO

Era apenas uma transformista da noite de Lisboa até ter sido descoberta por João Pedro Rodrigues. É transexual. Tem 47 anos

Dez da noite no Terreiro do Paço. O barco do Barreiro atraca e lá do fundo vem Cindy, esguia, mini-saia e blusão de cabedal, phones nos ouvidos e carteira a tiracolo. "Olá, amor", diz, muito loura, e logo se afasta para a casa de banho, talvez para retocar a maquilhagem. Daí a nada está a posar para a câmara fotográfica sem se queixar do frio que vem do Tejo. A seguir, um táxi, até à porta de um café no Chiado.

Toda a gente, do taxista ao transeunte, fica a olhar para ela com assombro, ou talvez vontade. Em cima da mesa do café está um livro de capa cor-de-rosa da Taschen: Fantasy Worlds. Cindy não repara. Pede uma caipirosca e acende um cigarro. Vai falar como se nos conhecêssemos há muitos anos.

"Sabes, estou numa fase da vida em que não quero nada com pessoas negativas, isso só me atrasa a vida. Quero estar onde sei que me querem bem. Por isso é que continuo a gostar tanto de viver à noite, de ir para o Bairro Alto e acabar de dia no Cais do Sodré. Para negativismo, já basta a vida. Mas não penses que sou uma pessoa revoltada, nunca fui. Já dizia a minha avó: "Não custa viver, custa é saber viver." Dou-me com muita gente e todos gostam de mim. É uma coisa natural, não aprendi, fui apurando. A verdade é que acho que sei viver."

Deve ter sido assim que Cindy caiu nas graças do realizador João Pedro Rodrigues. E por isso foi Irene, em Morrer como Um Homem (2009). E por isso é Candy em A Última Vez Que Vi Macau (2012), documentário de Rodrigues e de João Rui Guerra da Mata com estreia portuguesa, hoje, às 21h30, na Culturgest, na abertura (em competição) do DocLisboa (passa novamente na terça, às 16h45, no Cinema Londres).

Para João Pedro Rodrigues, a Cindy "é como uma actriz de Fassbinder", talvez uma Hanna Schygulla sem a mão de deus. "Ele já me disse isso mais vezes, e eu adoro."

Conheceram-se há três anos por causa de Morrer como Um Homem e foi como uma paixão, mesmo que ela nunca tivesse visto nada dele. "Fazer cinema era impensável, mas a oportunidade surgiu e agarrei-a. O Guerra da Mata [co-autor do guião, juntamente com Rui Catalão] conhece-me da noite há 30 anos e disse-me para ir fazer um casting com o João Pedro nos estúdios da Rosa Filmes, em Belém. Sabes aquelas pessoas que conheces e com quem tens logo empatia? Adoro o João Pedro. Ele trata-me por Joaninha, é muito carinhoso comigo."

Estreia em Caravela C"Est Moi

Joana é o outro nome de Cindy Scrash - assim conhecida desde 1982, quando se estreou no espectáculo de travestis Caramela C"Est Moi, na discoteca Finalmente, em Lisboa, ao lado de Ruth Bryden, Lydia Barloff e Vicky Bâton. Era a época de ouro do travestismo em Portugal. Primeiro foi bailarina naquele espectáculo, tinha até feito aulas de dança clássica com Rui Horta no quartel dos Bombeiros da Praça da Alegria. Depois passou a travesti. E, a seguir, a transexual.

"Um ano e tal depois de começar a fazer show pus silicone na cara e comecei logo a hormonar-me", recorda. "Sempre me conheci a gostar de bonecas, de vestidos e de saltos altos. Até atava mantas à cintura para fazer de saia e não jogava à bola com os outros rapazes. Claro que a minha mãe nunca achou muita piada, o meu pai era muito calado e nunca me perguntava nada. Mas percebia as coisas. A minha mãe chegou a jogar fora os sapatos de casamento, porque sempre que ela chegava a casa eu andava com os sapatos calçados, uns sapatos brancos de salto agulha, lindos. Tinha uns quatro anos, lembro-me perfeitamente. E nas brincadeiras com os meus amigos, eu era sempre a índia, mulher de algum."

Por que razão adoptou o nome artístico como nome pessoal, embora ainda não tenha alterado o registo civil, a Cindy não sabe explicar bem. É assim, simplesmente. "A Ruth baptizou-me como Twiggy. A Lydia dizia que eu tinha de ter dois nomes e disse vários. Chegámos a Cindy Scrash. Cindy é um nome doce, Scrash é um nome agressivo. Eu gosto. Para mim, Cindy e Joana são a mesma pessoa. Sou eu."

Nasceu em Albufeira há 47 anos, passou a infância na Baixa da Banheira e a adolescência no Barreiro. Pai pescador, mãe doméstica, um irmão oito anos mais novo. Mudou-se aos 19 para Lisboa com amigos, viveu sete anos com o Braga. "O amor da minha vida." Agora está outra vez no Barreiro. E muitas vezes ganha a vida como transformista. Recria em palco, com playback e adereços, as cantoras de que gosta: Céline Dion, Pink, Natalie Cole ou Whitney Houston.

"Comecei no Finalmente, depois, em 1991 ou 92, estreei-me no Trumps e também fiz passagens de ano e Carnavais no Sheraton da Madeira e no Casino Estoril. Há mais de um ano que não faço espectáculos, mas é provável que volte em breve."

Em A Última Vez Que Vi Macau a Cindy é Candy e ilumina os primeiros minutos do filme com um enorme decote - costurado por José Carlos Marques, travesti Nyma Charles. Com tigres em fundo, interpreta You Kill Me, tal como Jane Russell cantou em Macao (1952), de Josef von Sternberg.

Candy está em Macau, o realizador-personagem Guerra da Mata explica em off: "Mais uma vez, Candy tinha-se envolvido com os homens errados. Um grande amigo seu tinha sido assassinado. Ela acreditava que podia ser a próxima vítima e eu era a única pessoa em quem ela ainda podia confiar." É a ficção dentro do documentário.

"A cena inicial foi filmada em Almada, no Circo Cardinali", explica a Cindy. "Os tigres estavam mesmo atrás de mim, separados só por uma rede. Gritei horrores. Cinco tigres a rugir atrás de mim, e eu só pensava que se um deles me atirasse a pata apanhava-me logo. Foi em Fevereiro, estava um frio... Não tens noção."

O prazer do palco

Pede outra caipirosca, fuma muito e às vezes ri-se do que diz, como quem já não aceita levar-se a sério. "Tenho 1 metro e 80 de altura e gosto de estar nos 64, 65 quilos. Houve uma fase em que pesava 72 e já não cabia na roupa. Mas não vou ao ginásio, nem tenho cuidados com a alimentação. Como de tudo." E ri-se.

Não aceita que lhe chamem travesti, porque uma transexual feminina não se traveste de mulher, e também não gosta de ler com tristeza um percurso de vida que assume ter sido "no mínimo alternativo". Com orgulho viveu "muito intensamente" os loucos anos 80 do Alcântara-Mar e do Kremlin, do whisky e dos vícios. "Estou limpa há 12 anos. Arrependo-me, claro. Mas passou à história." No resto, privilegiada. "Em termos de família, sempre toda a gente me adorou. O cinema também tem sido um privilégio. Não gosto de me ver e ouvir, mas gosto de me exibir. São coisas diferentes. Gosto de estar num palco, dá-me prazer, sinto que gostam de mim. Gosto de saber que dei o meu melhor num filme. Ir a Cannes com o João Pedro apresentar o Morrer como Um Homem foi um prazer. A mesma coisa agora em Locarno, com o novo filme. Se pudesse, voltava lá todos os anos. Fui muito bem tratada, só gente bonita, batalhões de fotógrafos. Vi modelos de carros que nem sabia que existiam. Com o João Pedro talvez faça um terceiro filme, mas não posso dizer nada sobre isso. E se houver convites de outros realizadores, estou interessada em ouvir. Sempre andei na vadiagem, gosto de me divertir. Só não gosto que se crie a ideia de que uma pessoa transexual é uma coitadinha."

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