50 ANOS DE PORTUGAL PELA MAGNUM "Cristo é o grande artista"

Entre os mais reputados fotojornalistas do mundo, Josef Koudelka viveu o Portugal dos anos 70. No regresso, no ano passado, a convite da Magnum/CCB, fez 12.000 quilómetros de máquina em riste. Registou ambientes misteriosos, feitos de sombras e esfumados. Por Vanessa Rato (texto) e Rui Gaudêncio (foto)

Na Checoslováquia dos anos 40, ganhou o dinheiro da primeira máquina fotográfica a apanhar e a vender morangos silvestres. Hoje, aos 67 anos, Josef Koudelka é um dos nomes-mito do fotojornalismo. Condecorado pelo registo da invasão russa de 1968 ao seu país, foi obrigado a exilar-se dois anos depois - durante anos publicou essas imagens históricas sem as assinar para proteger a família, que deixara para trás, fechada na repressão comunista. "Quando saí da Checoslováquia perdi qualquer coisa", diz. Mas acrescenta que, em certa medida, países como Portugal e Espanha lho devolveram. A Portugal chegou pela primeira vez a três anos da revolução de Abril, integrado numa peregrinação cigana a Fátima. Preso pela Pide, e depois libertado, foi voltando quase anualmente até 1980. No regresso de 2004 fez 12.000 quilómetros das plantações vinícolas do Minho às minas de cobre de Aljustrel.
PÚBLICO - Raramente aceita missões. Porque aceitou esta?
JOSEF KOUDELKA - Não aceito missões para revistas, mas aceito propostas que vão exactamente ao encontro do que eu gostaria de fazer, em total liberdade e com determinadas condições.
Condições de que tipo?
Não faço nada em menos de três semanas e gosto de voltar três vezes aos mesmos sítios. Há duas coisas: o que eu digo ao lugar e o que ele me diz a mim. Isto quer dizer que há dois tipos de potencialidades: as que estão dentro de mim e as que estão fora de mim. É quando elas se encontram que há uma possibilidade de fotografia. Estive em Portugal pela primeira vez em 1971, depois voltei quase anualmente até 1980. Primeiro quis ver tanto do país quanto possível, depois de ter descoberto certos lugares tentei tirar o melhor partido deles e de mim.
No caso das imagens desta missão, há paisagens fáceis de reconhecer: a serra da Estrela, a praia do Guincho... Que características destes sítios lhe interessaram?
Mais ou menos o mesmo que me interessa desde que comecei a fotografar: a paisagem natural que foi alterada pelo homem, ou seja, a paisagem contemporânea. Uma destas imagens é feita do Sítio, na Nazaré: eu vivi lá nos anos 70 e quis ver como estava, se tinha mudado. Mudou imenso! Não é nada do que costumava ser. Nada resta do que havia nos anos 70, excepto as pessoas, que são muito simpáticas.
Nessa altura, o que o fez ir voltando?
Quando deixei a Checoslováquia, acho que por instinto, fui para os países que senti estarem mais próximos do meu coração. Espanha, Portugal e a Irlanda foram os que realmente me interessaram. Em Portugal, houve, por exemplo, Mondim de Basto. Há este monte enorme, como um vulcão, que no topo tem uma igreja [a de N.ª Sr.ª da Graça] com uma peregrinação [todos os anos em Setembro]... Nunca me vou esquecer da noite que dormi lá em cima, com toda aquela paisagem à volta e o fogo-de-artifício da festa a explodir. É por isso que foi tão especial voltar.
Esses eram três países muito pouco desenvolvidos. Portugal e Espanha viviam ditaduras. Era essa a ligação ao seu país?
Não tem a ver com a ditadura, mas quando saí da Checoslováquia perdi qualquer coisa. Perdi os amigos, a família... Não perdi a minha casa porque não a tinha, mas perdi outras coisas muito importantes para mim: a música popular e um certo tipo de festividades que não se encontravam da mesma forma em países mais ricos... Costumo dizer que voltei a nascer quando, na fronteira entre Portugal e a Espanha, na província de Huelva, encontrei a pequena aldeia de El Almendro. Sítios como El Almendro, com o fandango e todas as danças, tinham qualquer coisa a dar-me que eu tinha perdido.
Sente grandes alterações?
Na altura, houve qualquer coisa que eu senti que eventualmente se ia perder, mas, apesar do quanto a Espanha e Portugal mudaram, isso ainda não aconteceu completamente. Em Espanha e Portugal as pessoas continuam a gozar mais a vida do que noutros países.
Nas suas imagens de hoje, o que encontramos é um Portugal misterioso, de neblinas, sombras e esfumados. De onde vem este mistério?
Isso é o que terá que me explicar a mim [risos]. O que posso dizer é que, se eu pusesse estas imagens ao lado de outras, que nada têm que ver com Portugal, você provavelmente continuaria a ver nelas a mesma coisa. Nós somos o que somos, reagimos à realidade de determinada maneira. Eu sou a mesma pessoa quando fotografo em Portugal ou na Rússia.
Nesse sentido, descrever-se-ia como uma pessoa nostálgica? Estas imagens podem ser interpretadas como sendo-o.
Uma vez já expliquei que a minha religião me impede de falar das minhas fotografias [risos]. Não quero ter qualquer relação emocional com elas. Tenho-a enquanto as estou a fazer, depois acabou, tento vê-las como um pedaço de papel impresso - é tudo. É muito difícil para um autor julgar objectivamente o seu próprio trabalho. No princípio, na Checoslováquia, fotografei para um teatro. Lembro-me de o encenador me contar que o [dramaturgo russo Anton] Tchekhov achava que escrevia comédias e que foi a mulher dele, que era actriz, que lhe disse: "Anton, não me parece que isto sejam comédias. Eu choro!" O que posso dizer é que, decididamente, onde eu encontro a felicidade é sozinho, nas paisagens, a ouvir os pássaros, a olhar para as árvores, as pedras.
E as pessoas estão ausentes dessa felicidade? Fotografa-as cada vez menos...
Eu venho de um país comunista com uma estrutura de pensamento estalinista: faço divisões [risos]. Quando fotografo pessoas, uso uma máquina de 35 mm, quando fotografo paisagens, uso uma panorâmica, e gosto de estar sozinho, de não ver ninguém. Embora continue a gostar de fotografar pessoas, há hoje cada vez menos pessoas que me interesse fotografar.
Porquê?
Tem que ver com as razões de eu ter gostado da Espanha e de Portugal. Toda a vida me interessaram mais as coisas que estão prestes a terminar, e que eu tento preservar, do que aquelas que estão a começar.
Diz que nunca deu aulas de fotografia porque não pode dar a ninguém um par de olhos. Um bom fotógrafo para si é isso: instinto inato?
Acho que não há receitas nem regras. Na Checoslováquia, uma amiga perguntou-me o que tinha que fazer para se tornar uma boa fotógrafa. Eu disse-lhe para comprar um bom par de sapatos. O tipo de fotografia que me interessa é a de relação com os sítios, com a realidade de cada lugar.
Surpreendeu-o os percursos tão distintos que a Susan Meiselas e o Miguel Rio Branco fizeram em Portugal na mesma missão que o trouxe cá?
Não, porque eu conheço muito bem o trabalho de cada um deles. Todos somos diferentes, mas temos uma coisa em comum: o facto de gostarmos de boa fotografia. Quando se passa uma vida inteira a fotografar, 40, 50 anos, uma boa fotografia não depende apenas de nós, depende de muitos factores. Eu diria que uma boa imagem é um milagre. Cristo é o grande artista.

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