As arquitecturas imaginárias são tão reais como as construídas

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O cofre tinha ontem acabado de chegar ao museu depois da primeira fase de restauro O Julgamento das Almas, umas das pinturas portuguesas mais discutidas do século XVI Miguel Manso

Mais importante do que aquilo que se construiu é o que se pensa construir. É aí que está o epicentro do debate arquitectónico ao longo dos tempos. E é isso que quer demonstrar uma exposição que hoje é inaugurada no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa

A cotonete da conservadora-restauradora aproxima-se delicadamente do cristal. O cuidado pode parecer exagerado na limpeza de vidros de cristal, mas na verdade Mariana Cardoso está a dar brilho a um cristal de rocha, uma pedra semipreciosa, lapidada como um vidro facetado. Tem 17 centímetros e faz parte de um cofre veneziano do século XVI, que é uma das peças principais da exposição que hoje é inaugurada, às 18h, no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa.

O cofre está prestes a ser transferido das oficinas de restauro do Laboratório José de Figueiredo para o museu, que fica a dois passos de distância na Rua das Janelas Verdes, depois de aqui ter entrado há cerca de dois meses. "Isto estava completamente escuro", diz Mariana Cardoso. Olhamos com algum receio para a cotonete que a conservadora acabou de pôr dentro de um líquido e perguntamos como é limpo o cofre. "É só água e acetona", explica, e acrescenta que são apenas dissolventes. O cofre brilha em todo o seu esplendor original, do cristal à prata dourada, passando pelas incrustações em madeiras raras que deixaram de ser um borrão castanho. "O cristal de rocha, ao contrário do vidro, não tem defeitos, não tem bolhas de ar."

O cofre sempre esteve na exposição permanente do Museu de Arte Antiga, mas agora vai ser visto com outros olhos, diz António Filipe Pimentel, o seu director. Ele ainda só está a olhar para o vazio da vitrina onde vai ficar o cofre, à entrada da exposição A Arquitectura Imaginária - Pintura, Escultura, Artes Decorativas, em plena montagem e a que não paravam de chegar peças na manhã de segunda-feira.

Que tenhamos outros olhos é o que pede António Filipe Pimentel, um historiador da arquitectura, a quem venha ver a exposição que vai ficar até 30 de Março. Que olhemos para as 140 obras, de pinturas a peças de ourivesaria, e vejamos "que elas constituem ideias e o que elas relevam para a história da arquitectura". "A grande novidade da exposição é demonstrar que existe um território enorme da arquitectura que é preciso procurar nas outras disciplinas estéticas, onde ela se materializou e vive à margem da construção física. A exposição quer chamar a atenção para a falta de atenção que a arquitectura imaginária tem tido. Se estudarmos a arquitectura só pelo que foi construído, escapa-nos uma parte importante do debate." Alguns exemplos: a perspectiva na pintura, a microarquitectura na ourivesaria, a cenografia teatral. "Esta arquitectura imaginária é tão real como a arquitectura construída."

Arquitectura de liberdade

Vários homens transportam uma maqueta em madeira de nogueira pintada da famosa Capela de São João Baptista na Igreja de São Roque, mandada fazer em Roma pelo rei D. João V, que está a chegar do Museu de São Roque. Vai ficar ao lado de um vídeo em que se mostra o mausoléu de Alfredo da Silva, fundador do impérido industrial da Cuf, projectado por Cristino da Silva em 1942, erguido no Barreiro e quase desconhecido do grande público. "Andámos à cata da maqueta, mas não demos com ela. O mausoléu tem uma estética marcadamente do Estado Novo e mussoliniana", explica José Alberto Seabra, director adjunto do museu, que também está a ajudar na montagem. O monumento funerário sobrevive, tornando-se "um ovni, um objecto muito estranho" nessa paisagem do Barreiro.

A ideia para fazer esta exposição teve-a António Filipe Pimentel em frente a uma das pinturas portuguesas mais discutidas do século XVI, que pertence ao próprio museu. E estamos perante esse Julgamento das Almas, com uma iconografia singular e de autor desconhecido, o que tem motivado a tal discussão. "A pintura mostra uma cena do Juízo Final, muito rica do ponto de vista hermenêutico, que tem que ser entendida no quadro da cultura do Renascimento, onde há mais uma constabilidade de almas do que um peso de pecados." A arquitectura surge como um diálogo diacrónico, dando o sentido da passagem do tempo, mas também sincrónico: "Temos um grande edifício, que é uma espécie de arco do triunfo, que simboliza, de algum modo, a entrada das almas no céu e na glória, que é claramente renascentista. Sobre ele pousa um trono, com um Cristo em Majestade, com referências explicitamente góticas." Pimentel acha particularmente sedutor porque a pintura mostra-nos a sincronia daquilo que temos como separado: o Renascimento e o gótico. "Há um território de encontro entre correntes estéticas, que é apropriado aqui simbolicamente, e a arquitectura cumpre um papel instrumental. Ela dá o sentido da passagem entre tempos, funciona como membrana entre dimensões."

Na exposição há outra viagem, que é quando a arquitectura se apropria da liberdade conceptual que as outras disciplinas lhe fornecem. Liberta de problemas como a resistência dos materiais, da estática, há objectos que nunca foram sequer pensados para ser edificações. "A arquitectura vive muito mais como ideia nesse território." Para sublinhar essa noção de arquitectura como coisa mental, e também para fazer uma ponte com a contemporaneidade, a exposição apresenta vários projectos não construídos de arquitectos como Álvaro Siza, Eduardo Souto de Moura, João Luís Carrilho da Graça, João Mendes Ribeiro e Manuel Aires Mateus. "O que os une é essa distância entre a performatividade do empenho e do projecto e o facto de nunca serem outra coisa senão precisamente projecto, certamente conhecendo muitas outras reconfigurações noutras obras, também certamente inspiradores de muitos projectos de outros", escreve no catálogo Delfim Sardo, a quem coube a escolha dos arquitectos contemporâneos. A exposição, que tem como comissário adjunto Joaquim Caetano, tem um catálogo com vários contributos, como o de Rafael Moreira, Miguel Soromenho ou da italiana Giuseppina Raggi.

"Uau, adoro!", diz a arquitecta Manuela Fernandes, a que se deve o projecto museográfico da exposição, quando é surpreendida pelo efeito dos relicários de São Roque no espaço, onde são expostos vários desenhos com arquitecturas ilusionistas. "A sala é muito bidimensional com os desenhos à volta nas paredes. Os relicários, com o brilho, dão tridimensionalidade."

O cofre do xá

A exposição não quer fazer uma história da arquitectura imaginária, mas pensar nas questões que esta coloca e por isso está organizada em núcleos temáticos. É o caso do núcleo da "arquitectura como metáfora", cuja maqueta do Real Erário, antepassado do Ministério das Finanças, "é a peça central e muito simbólica". De José da Costa e Silva, o arquitecto que introduz o neoclassicismo, o projecto tem uma planta centralizada: "A apropriação do círculo vem de muito longe, da idealização do templo de Salomão, do túmulo de Cristo. É apropriado desde o Renascimento pelo domínio religioso como símbolo da centralização do universo, que representa a ordem sobrenatural, a salvação, a vida eterna. O Estado, no seu processo de laicização, apropria-se desses valores para ilustrar a sua própria centralidade. O Ministério das Finanças de então começou a ser construído no Príncipe Real, mas não passou dos alicerces, porque houve um "desvio colossal"." E saboreia "desvio colossal", que foi buscar ao vocabulário do actual Governo.

Alguém pergunta pelo cofre veneziano, que está na capa do catálogo, e que não há maneira de chegar. "É uma peça que tem uma viagem extraordinária. Feito em Veneza, foi oferecido a todos os soberanos da Europa, mas o preço extraordinário do cofre fez desistir todos um por um, incluindo o próprio rei de Portugal." Acaba por ir parar à Pérsia, adquirido pelo xá. Da Pérsia vai para Ormuz e daí vem para Lisboa por intermédio dos padres do Convento da Graça. "Os padres usavam-no como cofre eucarístico, tirando partido da refracção maravilhosa da luz que atravessava o cristal."

O cofre é uma microarquitectura. "Ele representa um aposento sumptuoso reduzido a uma versão liofilizada, como uma câmara extraordinária para albergar o mais maravilhoso dos tesouros. E é essa passagem do valor simbólico da arquitectura para as outras artes que é extraordinariamente interessante. A arquitectura sempre pensou muito sobre si própria, é a disciplina com maior produção académica, teórica."

Luísa Penalva, responsável pela colecção de ourivesaria de Arte Antiga, que começou agora a estudar o cofre na perspectiva da arquitectura, explica que é organizado como se fosse a sala de um palácio, com a representação detalhada das paredes, tecto e chão. "O chão, que só foi descoberto agora, porque estava tapado com um pano, é como se fosse um embrechado - aqueles mármores que fazem desenhos."

O cofre tem "uma história tão fantástica", diz Luísa Penalva, que "merece uma exposição só para ele." E é o que vai acontecer no museu em Setembro de 2013.

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