Reviver o passado em Santa Apolónia nas Casas Pardas de Velho da Costa

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Casas Pardas até 23 Dezembro no TNSJ e de 24 a 27 Janeiro no S. Luiz paulo pimenta

O que interessa ao público, e o que interessa ao crítico, neste Casas Pardas do Teatro Nacional São João? Começando pela primeira imagem, interessa o transporte para uma certa classe e uma certa época que a arquitectura do cenário faz, seguido da possibilidade de jogo teatral que a sobreposição de soalho, relvado e terra promete. Aqui poderíamos reviver o passado e anunciar o futuro, diria. Saltando para a última imagem, interessa, e muito, a anunciação profana, invertida, da cena final, em que Elvira (Catarina Lacerda) - tudo menos virgem - derrama a descoberta do prazer e o prazer da descoberta, com António (Paulo Moura Lopes) pela plateia.

Estes são dois exemplos de como o espectáculo Casas Pardas atravessa o fosso entre espectador e espectáculo para se materializar num lugar imaginário que é o da cultura do público dessa noite, feito de memórias de vidas passadas e agora daquilo que lhe está a acontecer mesmo ali à nossa frente. A transformação desses e de outros filamentos desta peça em acontecimentos extraordinários, comuns a criadores e a espectadores, garante a teatralidade - e o interesse - deste espectáculo.

Casas Pardas tem diálogos, narração e ainda uma hábil mistura dos dois, trazendo para a cena um português saboroso que só o teatro (nem a TV nem o cinema) se atreve a pronunciar. O poder da prosa nas cenas, porém, varia muito. Sempre que os actores se apossam das palavras da romancista Maria Velho da Costa, adaptadas por Luísa Costa Gomes, e transitam entre a voz das personagens, a voz da personagem narradora e a voz da autora, com fluidez, mas distinguindo-as, o espectáculo levanta voo. Ao contrário, quando misturam os diferentes registos sem os perceber e proferem as sentenças sem as dar a entender nem ao público nem às personagens nem a si mesmos, a obra cai no chão com o peso literário. O mesmo se pode dizer dos corpos, que falam tanto ou mais que os vocábulos: quando se agarram ao texto, realizam-no; quando se ausentam, desguarnecem-no. Dar aos braços e saltitar não significa nada.

O espírito da obra parece ser o de denúncia da decadência da burguesia portuguesa do fim dos anos sessenta, como táctica de sobrevivência da autora. Essa denúncia é formulada nos termos da própria burguesia, tendo como referência uma certa nobreza de valores. As criadas não escapam à denúncia. É a armadilha de caça - ainda que dourada - em que está presa a elite nacional. Quem se salva? A meio da peça, sobressai a imagem do desmemoriado pai de Elvira (Jorge Mota), chegado nesses dias à estação de Santa Apolónia, e agora acordando sobressaltado a meio da noite, sem saber onde se encontra. O homem repete para a filha: "Quem és tu?". Aqui há uma promessa de futuro na ficção mas também no desempenho dos actores e na liberdade da encenação.

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