Preparados para Nanni Moretti?

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O cartaz deste ano evoca Marilyn MonroeNa página ao lado, Nanni Moretti, presidente do júri da competição LOIC VENANCE/AFP
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Nanni Moretti já quase arrancou os cabelos com um filme de Cronenberg e já deu um golpe para, numa edição anterior de Cannes, premiar um filme de Kiarostami. Em Cannes 2012, que abre hoje, ele preside ao júri da competição, onde estão filmes de Cronenberg e Kiarostami. É para alguém estar preparado?

Contra que filme da competição de Cannes 2012 Nanni Moretti vai vociferar, que secreção do underground fará do presidente do júri da competição um fantasma castigador para assombrar críticos? Estava em Querido Diário (1992), recordam-se: a persona morettiana indignava-se com a violência de Henry, Retrato de um Assassino (John MacNaughton, 1986), deambulava por Roma e encontrava a prova do delito e o criminoso na pessoa de um crítico de cinema que defendera esse filme e que, cheio de remorsos, não encontrava descanso durante a noite. Moretti não era bálsamo para o inferno do outro e lia ao crítico o que ele escrevera sobre Henry... como lhe cravasse facas no peito. Lia-lhe também a defesa que o crítico fizera desse "pus do underground" chamado O Festim Nu (1991), de David Cronenberg... É isso, há Cosmopolis, de David Cronenberg, na lista dos 22 filmes em concurso no Festival de Cannes que hoje começa (abertura com Moonrise Kingdom, de Wes Anderson). Que o presidente do júri, o cineasta que mais tem (re)inventado a sua relação com o cinema através do puritanismo, da neurose, da obsessão do controlo, se volte a irritar, então, nesta edição.

Moretti, 58 anos, que nos resumos biográficos publicados por estes dias é pendurado nos cabides "intelectual, de esquerda e apaixonado pela psicanálise" - mas não viram o que ele faz à psicanálise em Habemus Papam? -, já recebeu uma Palma de Ouro em 2001, por O Quarto do Filho. E já integrou um júri em 1997. É isso o que nos interessa agora: nesse ano terá sido memorável de intencionalidade, como se conta em La Vie Passera comme un rêve, recordações da Croisette pelo presidente do festival, Gilles Jacob (Éditions Robert Laffont, 2009).

Presidente do júri desse ano: Isabelle Adjani, estrela em deriva de absoluto que se quis rodeada de jovens e de artistas - com o seu acordo: Gong Li, Nanni Moretti, Mike Leigh, Mira Sorvino, Paul Auster, Michael Ondaatje, Luc Bondy, Tim Burton. A actriz de olhar sempre húmido quis também estabelecer regras para o seu controlo. Para que nada lhe fugisse. (Até sugeriu aos outros a sua dieta alimentar à base de rabanetes e pimentos.) Mas não contou com Nanni, que no dia da decisão final, na Villa Domergue, colinas à volta de Cannes, utilizou vários meios e chegou ao seu fim. Isabelle era fã de The Sweet Hereafter, de Atom Egoyan, mas o favorito dos restantes era A Enguia, de Shohei Imamura. Nanni começou por convencer Adjani que o júri devia utilizar a prerrogativa do ex-aequo, algo só excepcionalmente permitido. Adjani achava que Moretti a amava, e concordou com Nanni: ex-aequo, então. Palma de Ouro para A Enguia e, a presidente do júri esperava, para o seu filme favorito... Mas não, à última hora houve guinada de Nanni em direcção à sua "dama", O Sabor da Cereja, de Abbas Kiarostami, filme que entretanto ele "trabalhara" junto dos outros jurados. Para Egoyan foi apenas o Grande Prémio do Júri. Os arregalados olhos de Isabelle choraram. De raiva. Conta Jacob que a partir daí Nanni passou a ser referido por ela como "Maquiavel". Isabelle pareceu-lhe naquele momento "a pessoa mais incapaz de ser feliz" que alguma vez encontrou. Teria sabido o que a esperava se tivesse visto a obsessão em movimento na curta que Nanni realizara um ano antes, Il giorno della prima di Close Up, sobre a estreia de Close Up, o filme de Kiarostami, no cinema que Nanni tem em Roma. É preciso dizer, então, que há novo filme de Abbas na competição de Cannes, Like Someone in Love: o Japão, depois da Toscânia de Copie Conforme, está no périplo internacional do iraniano, filmando a história de uma estudante que recorre à prostituição para pagar os estudos e da sua ligação com um homem mais velho, um dos seus clientes, homem do saber. Que os outros elementos do júri, Ewan Mc Gregor, Emmanuelle Devos, Diane Kruger, Hiam Abbass, Jean-Paul Gaultier, Alexander Payne, Raoul Peck, Andrea Arnold, se preparem para Nanni.

La Vie Passera comme un rêve dá outros exemplos dessa possibilidade de a personalidade (e a liberdade) de um presidente entrar em conflito com o que o festival deseja para si - ou com o que o director ou o presidente desejam para si, como por exemplo o decote de Sophia Loren. Instalando mesmo um clima de golpe de estado.

1977, presidente do júri Roberto Rossellini. Rodearam-no de Marthe Keller, actriz, ou de Pauline Kael, crítica da New Yorker - tremenda mulher e tremenda crítica, foi decisiva e incisiva nos tempos da "nova Hollywood" dos 70. Em competição estava Una Giornata Particolare, de Ettore Scola, e estava Sophia Loren, muito apreciada pelo (então) director do festival, Favre Le Bret, já que desabrochara, superando a explosiva campónia que também era. Le Bret percebeu que não teria a seu favor as mulheres do júri, e começou a "industriar" os homens, chamando a atenção para a necessidade de "grandes equilíbrios" e de um prémio para a Loren. Mas quer o realizador Jacques Demy, quer o produtor Anatole Dauman ou o escritor Carlos Fuentes, membros do júri, mostraram hostilidade face a Scola e a Sophia. Havia, no horizonte, Padre Padrone, dos Taviani. Era necessário falar com Roberto, então, tentando chantagem emocional, forçando uma ligação entre Una Giornata Particolare e o seu Roma Cidade Aberta ("votre chef d"oeuvre, mon cher ami", atirou-lhe Le Bret a ver se pegava). Pois sim... Palma de Ouro para os Taviani, nada para Sophia nem para Scola.

E pela primeira vez o presidente do festival faltou à cerimónia dos prémios, declarando mais tarde em entrevistas que nunca mais escolheria para jurados "amadores esclarecidos??. (Moral da história, segundo Jacob: os júris são tão possessivos em relação às suas prerrogativas, que são capazes de prejudicar o filme X se sentirem, por exemplo, que a imprensa torce pelo filme X ou considera-o incontornável no Palmarés.) Foi na sequência deste "petit scandale" que Gilles Jacob foi nomeado delegado-geral do festival. Eis o que encontrou.

1979, a odisseia para convencer Coppola a apresentar Apocalypse Now em Cannes em versão work in progress. Francis desembarcou na Croisette com quatro filhos pelas mãos (Sofia Coppola com seis anos), maltratado pela imprensa americana, que criticava a sua arrogância e autocondescendência. Numa conferência de imprensa parecia expor-se ao sacrifício como numa ópera, mas reclamava o amor dos europeus como bálsamo. Os europeus adoraram. Menos a presidente Françoise Sagan, que defendia a tradição literária de O Tambor, de Volker Schlondorff. De novo uma intromissão de Favre Le Bret, na véspera do palmarés, apelando aos interesses do festival, em favor de Coppola. Impôs-se o ex-aequo (Coppola: "Tive uma meia-Palma").

"Vinte e cinco anos o julgamento da história concluiria com a distância que Apolcalypse now é uma obra magistral. Um marco. E que O Tambor, pelo contrário, mostra algumas rugas." Sagan nos anos seguintes amaldiçoaria a experiência e a intervenção do festival, o que Jacob retirou como lição. Vejam-se, então, os perigos da intervenção.

1991, ano de La Belle Noiseuse, de Rivette, de Van Gogh, de Pialat (proximidade que o segundo considerava um golpe baixo, porque um filme "sobre a criação artística" como o de Rivette era para ele uma afronta), de O Passo Suspenso da Cegonha, de Angelopoulos, de Jungle Fever, de Spike Lee... O presidente Roman Polanski, alguém que gosta de gestos bruscos e teatrais - deve ser por isso que teve uma punching ball na sala de estar -, não gostava de nenhum dos filmes. Jacob viu todos os sinais vermelhos acenderem-se numa conferência de imprensa quando Roman incitou os seus (Alan Parker, Vangelis, Vittorio Storaro ou Whoopi Goldberg) a não se deixarem levar por obras "pretensiosas, feitas para espantar os críticos e de um aborrecimento incomensurável".

"É tudo o que encontrou? Não havia mesmo melhor?", assim Polanski ia provocando Gilles Jacob ao longo do festival. Este ia tacteando a astúcia. "Reparou? É uma homenagem a Polanski" - falava-lhe de Barton Fink, dos Coen, que entretanto surgira. "Você acha?", iluminou-se Polanski.

Resultado: Palma de Ouro a Barton Fink; prémio de interpretação masculina a John Turturro por Barton Fink; prémio de realização a Barton Fink - um verdadeiro golpe de estado, o que levou a que os regulamentos passassem a impedir o cúmulo de prémios, e na opinião de Jacob o palmarés mais radical a seguir ao que, oito anos depois, preparou o presidente David Cronenberg ao premiar tão decididamente o realismo descarnado de Rosetta, dos Dardenne, com a Palma de Ouro, e L"humanité, de Bruno Dumont, com o Grande Prémio do Júri, juntamente com os seus actores.

Nesse ano, uma cena original: um rapaz vestido de couro não recebia a Palma de Ouro, como achava justo, mas prémios técnicos. Agradeceu "ao anão [Polanski] e aos outros membros do júri". O filme era Europa, o realizador era um punk que o festival se encarregaria de transportar ao colo durante os anos seguintes, até o declarar persona non grata: Lars von Trier.

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