Figura de corpo presente

Deve haver uma dramaturgia do passo em falso no Teatro Nacional de São João. Desde o fosso de Frei Luís de Sousa, de José Wallenstein, em 2001, aos alçapões de D. João, de Ricardo Pais, em 2006, culminando este ano no chão de palettes pisado pela Alma, de Nuno Carinhas, as personagens principais parecem definir-se pela possibilidade da queda. Antes fosse. O risco desta alma tropeçar é mínimo. Ela - e as restantes figuras vicentinas - mal se deslocam nas tábuas. Apesar do didactismo de Gil Vicente, que na primeira fala pôs na boca de Santo Agostinho ser esta uma alma caminheira, e de o espectáculo começar e terminar com a alma e os anjos a correrem (sem sair do lugar), a única personagem que se mexe é o Diabo.

Caminhar daqui até ali para conseguir algo é uma noção física tão bem aprendida que nos serve a vida toda para entender coisas concretas, como ir buscar água à fonte, e ideias abstractas, como a subida de Cristo aos céus. Esta peça de Gil Vicente trata a vida como uma longa caminhada onde a igreja é uma pousada para as almas se saciarem e limparem. Neste espectáculo, a realização cénica dessa alegoria é estática. Peregrinação, procissão, romaria, maratona, jornada são apenas palavras. Não tem mal. Mas o resultado é um espectáculo onde a corporalidade dos actores não é usada para significar a caminhada a que se refere o texto, e muito menos a necessidade física de repouso que a estalagem e a estalajadeira (a Igreja) proporcionariam. Apesar do fato de treino, o corpo fica fora de cena. Com isto, o espectáculo priva-se de uma relação mais intensa com a corporalidade dos espectadores (que também conta.) Ninguém é desencaminhado.

Mas o espectáculo tem virtudes. A cenografia de Pedro Tudela, a luz de Nuno Meira e os figurinos de Nuno Carinhas dão à cena brilho e ritmo especiais. A interpretação de Alberto Magassela é viva, cheia de pequenos acontecimentos. O cruzamento de referências e o enxerto de poemas do séc. XX, feito por Pedro Sobrado, é cultíssimo. Mas a corporalidade regrada dos actores e o espartilho vocal em que se apertaram as frases de Gil Vicente não se recomendam. E também faz falta uma articulação mais directa entre as éticas e moralidades vicentinas, por um lado, e as crenças, conhecimentos e experiências da população de uma cidade europeia, por outro.

Um espectáculo deveria ser avaliado pelo que é ou pretendeu ser. Compará-lo com o que a crítica gostaria de ter visto é soberba, pecado capital. Felizmente, há a possibilidade de perdão e penitência, pelo que, agora, a crítica pecará. A cenografia tem as mesmas palettes que fizeram a imagem de marca de vários espectáculos de baixo e médio orçamento no Porto, o que bate certo com a visão oficial do texto e o tom da encenação. É a austeridade do texto original, parente próxima daquela outra dos noticiários. Precisávamos da indisciplina diária dos corpos contemporâneos.

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