A Luz como Meio e Limite: Flash cerebral

A procura de ferramentas capazes de controlar o cérebro ocupou a mente de muitos cientistas (eu incluída!) ao longo do tempo. Esta é a história de um organismo unicelular que revolucionou a forma como estudamos, e potencialmente tratamos, o cérebro.

Como é que o cérebro processa informação, armazena memórias ou controla o comportamento? Estes fenómenos resultam da comunicação entre neurónios e para os estudar em laboratório usamos ferramentas que nos permitem observar a actividade de neurónios enquanto modelos animais realizam acções. Mas a observação por si só não é suficiente — uma explicação mecanicista da função cerebral requer a manipulação da actividade neuronal, para com ela fazer o salto qualitativo da correlação para a causalidade. As manipulações cerebrais podem ser de dois tipos: inibição, aquelas que permitem investigar se a actividade de um grupo de neurónios é necessária para a execução de uma acção, seja ela um comportamento, pensamento ou emoção; estimulação, as que nos permitem perceber se a actividade de determinados neurónios é suficiente para uma acção. Estudar a linguagem do cérebro requer portanto poder remover ou introduzir palavras do seu léxico.

Para comunicarem, os neurónios usam sinais eléctricos e libertam neurotransmissores. Em repouso, o interior do neurónio é carregado negativamente relativamente ao meio extracelular, sendo que esta diferença de voltagem é fruto de uma assimetria na localização de vários iões entre o meio intra e extracelular. Quando os neurotransmissores se ligam aos receptores na membranas de um neurónio, levam à abertura de canais iónicos e à movimentação de iões, provocando uma alteração momentânea na diferença de voltagem do neurónio. Se um neurotransmissor levar à entrada de iões positivos, o interior tornar-se-á menos negativo (despolarizado). Se a despolarização atingir um nível crítico, ocorre o potencial de acção, que causa a libertação de neurotransmissores enviando uma mensagem aos neurónios vizinhos. Por outro lado, se o neurotransmissor levar à passagem de iões negativos, o interior do neurónio ficará ainda mais negativo, silenciando-o (hiperpolarização). Ora, se os potenciais de acção acoplados à libertação de neurotransmissores são a principal forma de comunicação entre neurónios, para conseguirmos controlar esta comunicação, precisamos de ferramentas capazes de controlar as correntes iónicas dos neurónios, ora criando potenciais de acção à la carte, ora impedindo os neurónios de os gerar.

A manipulação da actividade neuronal não é uma tarefa fácil. O cérebro do rato, por exemplo, um dos principais modelos animais usados em investigação, tem 71 milhões de neurónios. Mas estes não são clones uns dos outros. Há muitos tipos de neurónios, com propriedades distintas, envolvidos em processos diferentes, e que estão distribuídos por várias zonas do cérebro. Assim, uma experiência científica requer a manipulação de grupos de neurónios específicos. Uma vez que as ferramentas disponíveis não eram suficientemente específicas, o controlo directo da actividade neuronal permaneceu até há uns anos um grande desafio.

Surpreendentemente, a solução para este problema esteve sempre ao nosso alcance. Desde o aparecimento das primeiras formas de vida na Terra, desenvolveram-se vários mecanismos biológicos com a capacidade de captar e utilizar os raios solares. A luz solar pode, por exemplo, ser convertida em energia, através da fotossíntese, como também ser utilizada pelos organismos para formar imagens do mundo exterior, através de sistemas ópticos biológicos compostos por proteínas (opsinas), que detectam fotões e os transformam em sinais eléctricos e imagens. Curiosamente, existem algas unicelulares que são capazes de realizar os dois processos: detectam a luz para se moverem na sua direcção e produzem energia através da fotossíntese. A Chlamydomonas reinhardtii, uma alga verde de água doce, consegue detectar a luz de comprimento de onda azul através de um canal iónico chamado “channelrhodopsin”, uma proteína similar à presente nos nossos olhos. Quando exposta à luz azul, a channelrhodopsin abre-se e iões positivos entrem para dentro da alga, fazendo com que esta se mova em direcção à luz. Recorrendo à engenharia genética, um grupo de neurocientistas colocou este sensor de luz de algas em neurónios de ratinho e a sua iluminação com luz azul levou à produção de potenciais de acção à vontade do experimentador.

Foi assim, com a introdução de canais activados pela luz e capazes de controlar a actividade neuronal como a channelrhodopsin, que a ferramenta chamada optogenética veio revolucionar as neurociências. Experiências de causalidade passaram a ser possíveis literalmente da noite para o dia. Desde a descoberta da channelrhodopsin, uma mão-cheia de novos canais e bombas iónicas activadas pela luz foram identificados noutros microrganismos. Alguns destes sensores levam à passagem de iões positivos, causando estimulação neuronal e potenciais de acção; outros são específicos para iões negativos, causando a inibição neuronal. Uma vez que estes sensores são proteínas, podem ser introduzidos no material genético do hospedeiro e na classe de neurónio desejado. Isto permite-nos manipular a actividade de populações específicas, por vezes de apenas quatro ou cinco neurónios, enquanto o resto do cérebro permanece inalterado.

A optogenética funciona numa miríade de modelos animais, desde a mosca até ao peixe, do ratinho até aos primatas não humanos, tanto no contexto de investigação básica como aplicada. Os neurocientistas utilizam-na para estudar as funções básicas do cérebro, tais como o sono, o medo, o sexo, a tomada de decisão ou a agressão. A optogenética tem sido também utilizada para estudar doenças humanas em modelos animais, como, por exemplo, a depressão ou a ansiedade. Apesar de ainda se encontrar na sua infância, a optogenética poderá ter um papel fundamental na aplicação clínica, por exemplo para substituir a estimulação cerebral profunda, actualmente utilizada em pacientes com Parkinson ou no desenvolvimento de próteses da retina.

Este é um exemplo maravilhoso de uma solução para um problema muito difícil que foi encontrado onde menos se esperava e que não teria sido possível sem o investimento financeiro em investigação básica. É também irónico que esta revolução seja possível à custa de um organismo simples, desprovido de um sistema nervoso! Mais um passo importante que ajuda a esbater a singularidade da condição humana...

a Susana Lima é licenciada em Bioquímica pela Universidade do Porto, fez o seu doutoramento em Nova Iorque, enquadrado no Programa Gulbenkian de Doutoramento e Biologia. Na sua tese desenvolveu o primeiro método com luz para manipular o comportamento animal, numa era em que ainda não se conhecia a channelrhodopsin. Desde 2008 que é investigadora principal na Fundação Champalimaud, onde estuda comportamento sócio-sexual     

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