Inteligência artificial
Blake Wood foi às suas memórias e fez o retrato sintético (em IA) de histórias de amor LGBTQI+
Blake Wood abraçou a inteligência artificial para criar, a partir das suas memórias, um retrato sintético da comunidade LGBTQI+. Na relação "espiritual" com a máquina encontrou uma forma de "cura".
- Este artigo faz parte de uma série de artigos sobre Fotografia e imagem sintética gerada por inteligência artificial. Ler mais: A inteligência artificial faz tremer os alicerces da fotografia.
Durante a pandemia de covid-19, o fotógrafo norte-americano Blake Wood foi forçado a guardar a câmara fotográfica e a esperar. “Durante essa breve janela em que o mundo ficou irreconhecível, não pude dedicar-me à fotografia de retrato”, conta ao P3 o fotógrafo que, em 2008, então com apenas 22 anos, fez o retrato íntimo e extensivo de Amy Winehouse que, dez anos mais tarde, foi compilado em livro pela Taschen. “Estávamos todos confinados e o contacto com pessoas foi restringido. Então, em 2021, comecei a explorar a arte digital e a Web 3 e a penetrar nesse universo. Percebi que aí talvez existisse um novo mercado artístico e isso deixou-me muito entusiasmado.”
Blake Wood sempre foi fascinado por tecnologia, por dominar novas ferramentas. Quando a inteligência artificial generativa ficou disponível ao grande público (em sites como o ChatGPT, que gera texto, ou o Midjourney, Stable Diffusion, entre outros, que produzem imagem sintética a partir de texto), Blake mergulhou no DALL-E2, desenvolvido pela OpenAI, para desenvolver o seu primeiro projecto de imagem sintética, Visions and Memories, centrado no retrato LGBTQI+.
“Existe algo de mágico sobre ter uma ideia, uma memória ou um impulso criativo, colocá-lo em formato de texto e vê-lo, depois, transformado em imagem pela IA”, explica. O seu diálogo com a máquina foi, por vezes, “espiritual”. Blake partilhou as suas memórias com a IA, um processo que define como “terapêutico”. E dá como exemplo a imagem The Breakup, que gerou em 2022. “Tive um fim de relacionamento que foi muito difícil, quando tinha uns 20 anos. Fui capaz [com a IA] de reimaginar um desfecho mais confortável para mim, numa estrada de terra da aldeia onde cresci. Foi muito bonito poder resgatar o poder, de certo modo, e reenquadrar aquele acontecimento de forma positiva.”
As imagens geradas pela IA são fruto da leitura, pela máquina, de milhões de imagens que estão na web – que são utilizadas, em violação dos direitos de autor, pelas empresas que as detêm nos seus servidores. “Ao criar as minhas imagens, estava, no fundo, a revisitar as memórias e as visões de muitas pessoas”, reflecte o fotógrafo e artista natural de Vermont. “Estava, também, a transformar o mundo naquilo que eu desejava que ele fosse e parecesse.”
Blake não se deparou com preconceito ou enviesamento no retrato gerado pela máquina da comunidade LGBTQI+, como muitos poderiam esperar. “Quando as pessoas pedem à máquina que crie imagens com base em apenas duas ou três palavras, talvez o resultado devolvido possa ser enviesado. As pessoas devem lembrar-se que não existem muitas imagens online que retratem intimidade ou amor queer e que esse é o motivo pelo qual esse viés pode acontecer.” O norte-americano trabalhou os seus textos cuidadosa e detalhadamente antes de os submeter no DALL-E2. “Nem sempre lhes atribuo uma raça, um sexo ou um género e a resposta tem revelado bastante diversidade. Creio ser possível criar imagens inclusivas, se esse for o desejo do utilizador.”
O maior desafio, aponta, foi “conferir emoção e profundidade” às figuras de aspecto humano que gerou. “A IA tende a produzir representações robóticas, não emotivas. Existe quase um modelo de cara sem emoção, que fita o infinito, que se torna prevalente.”
“Adoro falar sobre o text prompt (o texto que é introduzido pelo utilizador no serviço de IA generativo)”, acrescenta. “É quase uma forma de arte isolada.” Cada máquina tem a sua própria linguagem. Diferentes serviços respondem de forma diferente a cada palavra que é introduzida. “Existem diferenças mesmo entre diferentes versões do mesmo serviço”, nota, aludindo para a sua experiência na versão 2 e 6 do DALL-E. Para obter os resultados pretendidos, o utilizador tem de conhecer a máquina, saber “manipulá-la”, e dar início a um processo longo de tentativa-erro que tem por base horas de diálogo. Também é útil conhecer a linguagem fotográfica para poder controlar aspectos estéticos e de enquadramento – e Blake, que começou a fotografar aos 11 anos, domina o léxico. “Cada imagem que gero é fruto de parágrafos de texto”, afiança. “Não estou a exagerar.”
Presentemente, Blake desenvolve outro projecto centrado na comunidade LGBTQI+ e na expressão de género. “É uma continuação do anterior e chama-se Reflections of Identity.” Utiliza uma versão mais avançada do DALL-E, a versão 6, e garante que as imagens são infinitamente mais fotorrealistas do que as do projecto anterior. “As ferramentas melhoraram muito e estão a esbater as diferenças estéticas que ainda existem entre imagem sintética e fotográfica. A luz, a profundidade, as formas, tudo está muito mais próximo da fotografia tradicional.”
Para Blake, “estamos na vertigem de algo revolucionário” — do ponto de vista filosófico, sim, mas também prático. “Alguns dos trabalhos relacionados com fotografia comercial, como a fotografia de produto, vão passar a ser feitos pela IA. Já está a acontecer.” Mas, na opinião do fotógrafo, isso pode ser algo positivo. “Talvez nos libertemos de trabalhos monótonos e aborrecidos e possamos finalmente dedicar-nos ao lado mais criativo.” Conseguirão todos os fotógrafos adaptar-se ou terão, muitos, de abandonar a profissão?
O que é urgente, refere Wood, é que as pessoas sejam informadas e saibam se estão diante de uma imagem sintética ou fotográfica. Essa rotulagem ou classificação é necessária. “As pessoas têm de saber. Isso faz toda a diferença.” As imagens de Visions and Memories não são fotografia, sublinha. A imagem sintética gerada por IA “não irá substituir a fotografia”, crê. “É apenas uma outra forma de expressão artística.”
Blake gosta do facto de ter conseguido, através da IA generativa, “criar imagens do universo queer que, de outra forma, jamais existiriam”. E não pretende parar por aqui. “Não é que vá parar de fotografar. Isto é uma nova ferramenta que me permite traduzir ideias em imagens de forma muito rápida, algo que é perfeito para o meu tipo de personalidade.” Sabe que irá continuar a fotografar em analógico e a revelar filme em laboratório. Uma actividade não exclui a outra. “Enquanto artista, sinto que este é um momento muito interessante para estar vivo.”