Torne-se perito

Há ciência em tudo o que comemos

Foto
Ana Tavares e Gisela Abrantes, duas das alunas de um mestrado único no país...... e alguns dos trabalhos mostrados no Mercado de Santa Clara, em Lisboa ENRIC VIVES-RUBIO

Ainda é verdade que, como disse um dia o físico Nicholas Kurtis, sabemos medir a temperatura na atmosfera do planeta Vénus e não sabemos o que se passa com os nossos soufflés? O mestrado em Ciências Gastronómicas oferecido por duas universidades de Lisboa tenta contrariar isso e mostrar que, se conhecermos melhor os alimentos e as técnicas, podemos trabalhá-los melhor - e comer melhor

Ainda não era meio-dia e já nos estavam a oferecer uma caipirinha. Só que esta caipirinha, inventada por Ana Tavares e Gisela Abrantes, era diferente daquilo a que estamos habituados - vinha em forma de gelatina dentro de um quarto de lima. Seguiu-se uma caipiroska servida dentro de uma esfera. E depois uma lichia com espuma de saké.

"O que é que fica bem com vinho do Porto?", lançou em seguida Gisela. Que tal melão com presunto? E à nossa frente aparece um pequeno copo de vinho do Porto com uma bola de gelo de melão e um chip de presunto. E ainda não tínhamos acabado, porque Ana e Gisela ainda tinham mais uma invenção para nos mostrar, desta vez inspirada numa ida ao cinema. Chamaram-lhe Cuba Livre Cinema, tinha rum, Coca-Cola, limão e... gelo de pipoca.

E foi assim, depois da caipirinha, do vinho do Porto, do saké e do rum, que terminou a apresentação do trabalho de fim de ano das duas alunas do mestrado em Ciências Gastronómicas. Paulina Mata, engenheira química, professora na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa e responsável pelo mestrado (juntamente com Catarina Prista, do Instituto Superior de Agronomia da Universidade Técnica de Lisboa), tinha decidido desta vez que os trabalhos seriam apresentados no Centro de Artes Culinárias do Mercado de Santa Clara, em Lisboa, porque a ideia é evitar que este seja um curso fechado dentro da universidade, e preparar os alunos para apresentar os trabalhos em frente de quem aparecesse.

Antes da mixologia (o tema do trabalho de Ana e Gisela), já tínhamos ouvido Clara Cristiano falar sobre azeite, explicar como é que se distinguem os seus diferentes tipos e defender a importância de os conhecermos melhor. Vanessa Costa entrara pelo mundo dos E"s, os aditivos alimentares que encontramos nos rótulos de muitos produtos, servindo geralmente como espessantes, corantes ou conservantes, e que são também usados na cozinha molecular para fazer coisas como esferificações e falsos caviares, espumas, ar, falsos esparguetes, etc. Foi uma viagem pelo mundo do xantano, do alginato, da maltodextrina, do azoto líquido.

Outra aluna, Rute Pedro, falou dos açúcares e, com um rebuçado na boca para melhor entrarmos no tema, voltámos aos rótulos dos produtos para perceber que quantidade e que tipos de açúcares são usados na indústria alimentar. No dia seguinte, segundo e último de apresentação de trabalhos, falar-se-ia de vegetais, especiarias, ervas aromáticas, fermentação, pão sem glúten ou de como "a ciência também chega ao Alentejo... devagar, mas vai chegando".

Todos estes temas encaixam-se neste mestrado que é único no país e apresenta-se como tendo sido pioneiro na Europa. Aqui não se ensina a cozinhar, explica Paulina Mata, ensina-se a conhecer melhor os alimentos, a perceber o que os compõe e como é que reagem a diferentes técnicas e a outros ingredientes. O mestrado (com um total de quatro semestres) tem atraído pessoas de várias áreas, algumas das quais ficaram recentemente desempregadas e procuram alargar a sua formação base ligada à engenharia alimentar, à agronomia, ao marketing, à cozinha. Gisela, por exemplo, é chefe de cozinha no Brasil, onde dá também aulas, e diz nas despedidas de final do ano que quer voltar em Setembro para terminar a formação. O mestrado, diz Paulina, tem despertado o interesse de muitos brasileiros, que não encontram uma formação deste tipo no Brasil.

O que é uma orchata?

Sobre as mesas do Mercado de Santa Clara foi colocado um pequeno dossier para apresentar alguns dos trabalhos dos alunos. Logo à entrada, uma frase que resume a filosofia na base deste mestrado: "Penso que é uma triste constatação sobre a nossa civilização o facto de medirmos a temperatura na atmosfera do planeta Vénus e não sabermos o que se passa com os nossos soufflés", disse em 1969 o físico de origem húngara Nicholas Kurtis.

Depois, várias perguntas para as quais aqui se tenta dar respostas: "Em que época do ano as couves são menos amargas?" (a resposta é o Inverno), "o que é uma orchata?" (bebida feita com tubérculo de chufa), "por que é que algumas cenouras originárias do Leste Europeu são roxas?" (porque em vez de carotenóides, têm flavonóides). E ainda informações sobre por que é que a carne dos peixes é branca (porque têm mais músculos de movimentos rápidos do que os animais terrestres), ou a fórmula que permite calcular a quantidade de gelo necessária para compensar as perdas térmicas em pescado refrigerado.

Postas assim parecem respostas a um concurso, mas são apenas exemplos de assuntos que podem ser aprofundados durante os dois semestres que agora terminaram. O mestrado está organizado em módulos que podem ser frequentados separadamente, da gastronomia molecular ao desenvolvimento de novos produtos, passando, entre outros, pelos hidrocolóides na alimentação, a química dos alimentos, técnicas de análise sensorial, o vinho na gastronomia, alimentos fermentados ou história da alimentação.

Por detrás do que aqui se aprende está o princípio de que a produção e transformação dos alimentos baseia-se em processos que devemos conhecer para melhor os podermos trabalhar.

"Quando se conhece melhor os alimentos, cometem-se menos erros", diz Paulina Mata, que é também, juntamente com Margarida Guerreiro, autora do livro A Cozinha é um Laboratório (2009). "A certa altura, todos os cozinheiros queriam fazer espumas de azeite. A questão é que não existem espumas de azeite, porque para se fazer espumas é preciso usar emulsionantes e é preciso ter o mínimo de gordura possível, daí que os cappuccinos se façam com leite magro. Tudo tem uma razão de ser. Ao longo do tempo, as pessoas foram percebendo, por exemplo, como se retiram os elementos tóxicos de um alimento. A mandioca brava tem muito cianeto e mata, e os índios aprenderam a libertar-se do cianeto e a comê-la."

E apesar de Paulina ser uma das mais entusiásticas estudiosas da gastronomia molecular em Portugal (com ligação a projectos como o Cooking Lab), este não é um curso de cozinha molecular, embora também se fale de algumas das técnicas mais inovadoras - como as do britânico Heston Blumenthal, do restaurante Fat Duck, o chef que, na opinião da professora, está a fazer coisas mais interessantes nesta área. "Admiro muito o trabalho do [espanhol] Ferran Adrià, mas a aproximação dele à cozinha continua a ser por tentativa e erro. Com o Blumenthal a refeição pode parecer mais normal, mas foi tudo muito estudado, e a preparação de qualquer coisa pode demorar muito tempo apenas para optimizar o sabor. Tudo envolve muita técnica."

No dia em que conversamos, traz com ela, para dar aos alunos, uma receita de Blumenthal de uma sopa fingida de tartaruga, um prato inspirado por um desenho da Alice no País das Maravilhas - o chef do Fat Duck diz, a propósito deste prato, que "cozinhar é como descer por uma toca de coelho até um país das maravilhas - a sensação de descoberta, a forma como as coisas não são exactamente o que parecem".

É esta ideia de que as coisas não são exactamente o que parecem que deve justificar que se queira saber mais. Um dos trabalhos dos alunos do curso que aparece no dossier distribuído no Centro de Artes Culinárias lembra que algo aparentemente simples como um caldo de carne foi estudado no final do século XVIII pelo químico Antoine Lavoisier, que, "através da densidade de soluções aquosas obtidas cozendo tecido muscular de vaca, determinou a quantidade de matéria dissolvida e as condições para a maximizar". "Há coisas que não são intuitivas. As pessoas acham que para se fazer um bom caldo basta este estar horas ao lume", prossegue Paulina. "Mas faz-se um bom caldo numa panela de pressão porque as temperaturas são mais altas e não se perdem os aromas."

É por isso que não aceita o argumento dos que dizem que as técnicas elaboradas são uma coisa do passado e que o que é importante na cozinha hoje é apenas a qualidade dos ingredientes. "Não é fácil aplicar estas coisas. É mais fácil dizer que é uma moda que vai passar. É muito fácil fazer bolinhas [esferificações], isso qualquer pessoa faz. Mas muita gente não conhece bem as técnicas, não as sabe usar nem percebe como é que elas se podem integrar na cozinha. Se calhar, o que acabou foi tentar-se copiar o Adrià e, por não se saber, acabar por se fazer coisas más. Mas como é que podem dizer que a técnica passou? Nem que seja para fazer sopa. Não é preciso ter um laboratório na cozinha, mas dantes também não havia frigoríficos e as pessoas aceitaram-nos. As coisas evoluem, e recusá-lo não leva a nada."

No mestrado em Ciências Gastronómicas, os alunos tanto vão ver fábricas de enchidos como aprendem a fazer esferificações. "No fim digo-lhes: agora quero provar umas coisas boas feitas com isso." Vai um vinho do Porto com gelado de melão e chip de presunto?

Sugerir correcção