Sopeira no cinema e rainha na TV, Dalila é agora Florbela

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Pedro Cunha

Durante uma fase da sua vida, os papéis por que lutou não se concretizaram. Mas a actriz Dalila Carmo, que termina em breve o contrato com a TVI, canal que lhe deu protagonismo, é agora Florbela Espanca - num filme que se estreia dia 8, retrato de uma mulher e de uma época - e na versão de três episódios para televisão.

Dalila Carmo, aos 37 anos, tem o seu primeiro grande desafio no cinema. Interpreta a escritora Florbela Espanca (1894-1930) na segunda longa-metragem realizada por Vicente Alves do Ó, que já tinha trabalhado com a actriz em Quinze Pontos na Alma. O filme tem estreia marcada para 8 de Março e foi realizada também uma série de três episódios para televisão. Florbela retrata um período da vida em que a alentejana, filha ilegítima, divorciada, suicida, autora de O Livro das Mágoas, Charneca em Flor e As Máscaras do Destino, não conseguiu escrever. O período antes e depois da morte do seu irmão Apeles, que num voo de treino se despenhou no Tejo em 1927.

A actriz, que actualmente vive em Madrid, onde está o seu marido, nasceu em Vila Nova de Gaia, cresceu no Porto e mudou-se para Lisboa quando acabou o curso de Teatro e Dança no Balleteatro. Em Nova Iorque, frequentou o Actors Studio, a convite da encenadora Marcia Haufrecht, a escola do célebre Método. Fez teatro. Interpretou várias "sopeiras", como ela diz a brincar, no cinema português. Foi lavadeira em Vale Abraão, de Manoel de Oliveira; empregada de geladaria na Comédia de Deus, de João César Monteiro; criada em Tráfico, de João Botelho e em O Anjo da Guarda, de Margarida Gil. Até ao dia em que decidiu que, "para fazer sopeiras toda a vida no cinema", ia "fazer rainhas para a televisão."

Viu muitos dos papéis que desejava desaparecerem-lhe. Foi a protagonista da série da RTP Diário de Maria e, desde há anos, trabalha em séries e novelas da TVI. Foi a protagonista da Filha do Mar mas o seu contrato com a estação acaba em breve. Não consegue transformar-se numa marca e considera que não é possível viver-se permanentemente numa montra. Vive um dia de cada vez.

A ideia que tinha de Florbela Espanca mudou depois de a interpretar no cinema?

Como mulher, Florbela Espanca foi uma descoberta para mim. Nunca tive a fase Florbela Espanca por que muitas adolescentes passam. Na adolescência, eu estava a ler a Psicogénese das Doenças Mentais. Hoje posso encontrar pontos de identificação. Ninguém sabe verdadeiramente quem era a Florbela Espanca e toda a gente tem uma opinião formada sobre ela. Essa também foi uma descoberta interessante. Nem ela própria sabia quem era. Há-de permanecer um mistério.

Em relação aos outros papéis que já interpretou, há uma grande diferença: é uma personagem baseada em alguém que existiu.

Quando existe essa responsabilidade acrescida, há a necessidade de honrar a memória dessa pessoa. Não de a endeusar ou de a tornar numa figura sem mácula do ponto de vista humano e do ponto de vista artístico, mas de tentar respeitar a sua memória. Não é só uma criação nossa. Não há registos da voz da Florbela Espanca. Como o pai, João Maria Espanca. Era fotógrafo em part-time, existe um registo fotográfico imenso mas penso que as fotografias pelas quais a Florbela é conhecida são bastante redutoras. Nas fotografias está de sobrancelha franzida, apesar de escrever nas cartas que era uma pessoa cheia de alegria. Tudo é muito contraditório.

Conheceu alguém que a tivesse conhecido?

Uma senhora que ainda se lembrava dela porque tinha sido sua aluna, Aurélia Borges. Tinha memória dela como uma mulher frágil, permeável a tudo o que se passava à volta. Não a via nem como uma diva, nem como uma mulher de grandes excentricidades. Era uma mulher normal que interiormente rasgava com padrões e convenções da época. Escreveu-se tanta coisa sobre a Florbela Espanca que é muito duro rasgar esse corpete formatado que toda a gente tem sobre ela. Do ponto de vista de um actor, o que me interessa é tentar compreender comportamentos humanos. Tentei chegar à pessoa mais do que construir uma Florbela cheia de tiques e maneirismos. Não podia construir uma personagem só baseada naquilo que ela escreveu. Portanto, ao tentar aproximar-me dessa essência fui coleccionando detalhes, mas são tudo abordagens, aproximações que nunca vamos poder confirmar.

É considerada uma actriz do "método", como construiu a personagem?

Comecei por coisas práticas. Achava que podia haver um protocolo de época e tive aconselhamento. Os anos 20 foram uma fase de uma certa libertação, portanto acabei por não querer construir tanto. Tive de aprender caligrafia. O sotaque alentejano só foi trabalhado para a série que passará na RTP. No filme, ela já estava a viver em Lisboa. Eu sou do Porto, vivo em Lisboa há muitos anos e perdi o sotaque ao fim de três meses. No filme não há sotaque. Mais do que o sotaque, eu estava preocupada em dar idades diferentes.

Na série, vemos Florbela na adolescência?

Com 17, 18 anos. Decidi focar-me num determinado período da vida dela porque senão poderia cair em clichés. É sempre complicado fazermos personagens que estejam fora da nossa faixa etária. Vamos acumulando camadas ao longo da vida e é difícil, de repente, voltar a essa pureza. Gostei muito de fazer essas cenas, de certa forma aliviou-me. Permitiu-me descansar daquela carga que estava a ter como Florbela já a viver em Lisboa.

Apaixonou-se por aquele guião.

Inicialmente, só li o guião do cinema, o da série li-o durante a rodagem. Tinha cenas que são bombons para um actor. A minha relação com o guião foi completamente intuitiva, sensorial e simbiótica. Não sou uma pessoa cerebral e o Vicente também não, encaixamos completamente. É desafiante trabalhar algumas cenas como Vicente as escreveu e como ele as dirige. Há humanidade nos guiões do Vicente, e humanidade é uma coisa de que sinto falta no cinema português. Há uma concepção estética forte, baseada na literatura, nas artes plásticas, em coisas que também admiro, mas falta-lhe humanidade. O Vicente escreve para pessoas antes de escrever para actores. Gosta de escrever para pessoas e sobre pessoas. É isso que interessa, não é uma abordagem teórica.

Como são as mulheres no cinema dele?

Ele gosta de heroínas. Gosta de personagens fortes e marcantes. Apesar de toda a tragédia que envolve a vida da Florbela Espanca, ele quis fazer uma mulher com força. Ela não foi uma heroína em muitas coisas, mas foi heroína do ponto de vista humano e da forma como conseguiu sobreviver tão espartilhada naquela altura.

Quem trabalha consigo diz que se entrega logo aos papéis, nos castings já estava em personagem.

Foi intuitivo. É muito complicado falarmos sobre o nosso processo de trabalho, é uma coisa tão interior, tão pessoal, tão íntima que é quase como se eu estivesse aqui a mostrar a minha roupa interior. Durante anos, aprofundei uma escola e um caminho, o tal "método" de que se fala, e hoje em dia o meu caminho é um cruzamento de várias opções. Há a abordagem inicial que é muito sensorial e afectiva e, em outras coisas, não. É complicado dissecarmos esse processo. Tenho muita dificuldade em falar do meu caminho.

Mas falou com pessoas que a conheceram, viu os manuscritos.

Estive com o colar dela, com a família, com tudo aquilo que me pudesse aproximar e a partir daí tive de me libertar. O Vicente disse: "Dalila, acabou. Não vais ler mais nada e liberta-te de tudo." Realmente há um momento em que temos de meter a informação para trás das costas, quanto mais gradual for, melhor é. Trata-se de uma assimilação lenta e não podemos ter consciência dessa apropriação. Depois, já está tão intrinsecamente em nós que sai intuitivamente.

Pode dar um exemplo?

Primeiro fui ter aulas de Foxtrot mas depois, quando a música entra, os passos têm de me sair naturalmente. Não posso, como actriz, estar a pensar. Ao dar entrevistas, tenho de pensar muito antes de falar. A representar é o oposto. Não posso pensar naquilo que vou fazer, tenho de fazer e pronto. Se penso como é que vou fazer, nunca acontece. O segredo dessa entrega é não pensar muito, coleccionar o máximo de informação que posso, ir deixando que se entranhe até fazer parte de mim. Às tantas já nos transformamos naquilo. Perguntam-me muitas vezes como é depois o processo de ruptura com estas personagens, como é que nos vamos desligando. Também acontece progressivamente. Vamos voltando a nós, embora as personagens fiquem coladas a nós durante muito tempo.

Em Florbela, há cenas que terão sido difíceis de fazer por causa da dor, da tristeza e da violência.

Aquilo a que eu chamo "os momentos de descontrolo". [Numa das cenas do filme, Florbela tenta suicidar-se afogando-se num poço.] Metaforicamente, temos de nos atirar ao poço realmente. Mas eu teria repetido essas cenas todas as vezes que fosse necessário. Muitas vezes as pessoas têm imensos preconceitos em relação à televisão, mas uma das coisas que nos dá é essa ginástica, temos de reagir depressa e rápido. Custa, e provocar o vómito das entranhas é uma coisa dolorosa tanto para quem faz como para quem está a assistir. Acredito que é quase como um músculo que vamos desenvolvendo. Vamos aos limites, sim. Andei muito borderline durante todas as filmagens. Apesar de tentar descontrair entre cada cena e termos vivido um ambiente de grande harmonia e cumplicidade, até quase de felicidade apesar de o tema não ser propriamente ligeiro, tive de manter a minha zona de sombra sempre activa para aquele filme.

Como decorreram as filmagens no Alentejo?

Não sou nada esotérica, mas aconteciam sempre imensas coisas. Se eu conseguisse acreditar na vida para além da morte, acreditaria absolutamente. Há uma parte de mim que acredita que a Florbela esteve connosco durante o filme. Mas é a parte com que estou diariamente em conflito porque racionalmente não aceito essa hipótese. Durante o filme, eu ia falando com ela. Aquilo era estranho até para mim. Mas dava-me imenso conforto, a mim e a todos. Numa leitura nas Galveias, eu e o Ivo Canelas [que interpreta no filme o irmão Apeles] ao ler, tropeçámos nas palavras e olhámos para cima: "Então Florbela?!" O que houve foi um sentimento de cumplicidade em relação a um ser que já não está aqui. Embora haja uma parte de mim que acha estranhíssimos determinados episódios que aconteceram durante a rodagem.

Tais como?

[Florbela Espanca nasceu no dia 8 de Dezembro de 1894 e morreu no dia 8 de Dezembro de 1930]. O número oito aparecia em tudo, não só nas portas como até no sobreiro onde acaba o filme. Determinadas brisas ocorreram durante as filmagens. A minha parte racional nem me deixa falar delas.

Qual foi a reacção dos habitantes nos locais onde ela viveu?

Reacções muito contrárias umas às outras. Desde pessoas que vinham ter comigo e lhe chamavam "essa maluca" e falavam mal dela como se fosse a vizinha desavergonhada que eles viam todos os dias entrar em casa às tantas da manhã. Outros diziam: "Finalmente alguém se lembrou de fazer um filme sobre essa mulher que foi tão maltratada, tão injustiçada, que sofreu tanto." De uma forma geral, o sentimento das pessoas por ela é de uma certa compaixão, nomeadamente em Vila Viçosa. Não se sei a compaixão é sigilosa ou assumida, a verdade é que ela durante muito tempo não terá sido bem recebida lá. Só está sepultada em Vila Viçosa desde 1964. No Brasil, a Florbela Espanca tem um clube de fãs imenso, só no Orkut são mais de 40 mil, já fizeram curtas-metragens e filmes sobre ela, aqui houve projectos no cinema que não se concretizaram. É bom fazer-lhe justiça. O filme acaba por dar um retrato de Portugal numa época. Ela é uma mulher que fez a transição de uma época para outra.

Como é que a vê?

Acredito que tivesse dificuldade em lidar com as coisas do quotidiano, mais rotineiras, mas são suposições, sinto-me sempre presunçosa quando me perguntam quem ela era. Vejo-a como uma pessoa que se esforça, que tem um impulso criativo e artístico muito grande, que tenta acumular experiências de vida para através da escrita reproduzir o que viveu. O guião não é sensacionalista na forma como pega em determinados factos da vida dela. O Vicente podia ter feito um biopic tradicional, um filme tipo caderneta de cromos em que vamos vendo o desenrolar da vida de uma pessoa através de sketches. Da mesma forma que não quis especular sobre a morte dela, nem quis ser redundante sobre a relação dela com o irmão. Tentámos todos ser ambíguos porque ela era ambígua e não quisemos fechar leituras. O espectador quando vai ver um filme, ou uma peça ou lê um livro tem de ter espaço para poder interpretar aquilo que está a ver sem fechar portas.

Já disse que este papel foi o primeiro grande desafio da sua vida.

Gosto muito de fazer cinema, tinha muitas saudades. Lembro-me que me diziam quando comecei a carreira: "Não há pequenos papéis, há pequenos actores." Há pequenos papéis, há. Eu gosto de fazer papéis com princípio, meio e fim. Fazia-os no teatro e na televisão. No cinema, eu fazia apontamentos. Gosto de dar corpo àquilo que estou a fazer. Não posso dizer que foi o único grande papel da minha vida - fiz coisas que me deram imenso prazer fazer e onde me senti completamente realizada - mas neste trabalho tive possibilidade de ir a certas zonas onde ainda não tinha ido. Nesse sentido foi extraordinário.

Em 1999, numa entrevista que deu a Rodrigues da Silva do JL (Jornal de Letras), brincava por, aos 24 anos, já ter feito cinco "sopeiras" no cinema. Nos filmes de Manoel de Oliveira, João César Monteiro, João Botelho, Margarida Gil e Fabrice Cazeneuve.

A televisão tirou-me desse patamar. Foi incrível, pensei: que se lixe o cinema! Para fazer sopeiras, toda a vida no cinema, vou fazer rainhas para televisão.

Não eram umas "sopeiras" quaisquer.

Eram especiais (risos). Eu tentava variar o máximo possível de umas para as outras, mas estava a necessitar de um upgrade na minha vida! Tive muitos preconceitos quando arranquei para a televisão, tinha medo. Havia imensa gente que me aconselhava a não fazer televisão. Mas a televisão permitiu-me coisas absolutamente extraordinárias. Esse preconceito felizmente tem-se vindo a diluir. Tenho dado conta de que ser actor é uma profissão muito complicada. É uma profissão para meninos ricos, porque um actor gasta dinheiro com tudo: fotografias, roupas, o ter de aparecer, managers para nos promoverem e venderem a agências e a directores de casting lá fora. Um actor está sempre a gastar dinheiro para aparecer. Não tenho muitos amigos no meio. As pessoas mais próximas não são do meio artístico. Faço questão de não viver num gueto e de ser bastante ecléctica e transversal nas minhas relações afectivas. Fechamo-nos muito nesta profissão e é contraproducente.

Quando acabou o curso de teatro, veio para Lisboa morar sozinha, numa pensão no Intendente?

Era mais baratinho. Tinha 18 anos, era a maior. Olhando para trás, teria repetido tudo igual, mas se calhar teria criado menos expectativas. Acreditava que as coisas seriam mais simples. Vim a Lisboa ver um concerto no dia 1 de Agosto de 1993 e não voltei para o Porto. Gosto imenso do Porto, mas não sabia o que ia ficar lá a fazer. Estava na idade de arriscar. É uma chatice porque aos 18 anos achamos que somos imortais e temos uma dose de irresponsabilidade e de inconsciência enorme. Eu tinha imenso, foi essa a mola.

O primeiro filme em que entrou já em Lisboa era co-produzido por António da Cunha Telles. Florbela é produzido por Pandora, a filha do produtor e realizador.

António Cunha Telles foi uma das pessoas responsáveis por eu ter conseguido ficar em Lisboa nessa altura. Eu vinha com um trabalho que não se concretizou e fiquei um bocadinho à nora sem saber o que fazer. Comecei a fazer muitas co-produções para o Animatógrafo de Cunha Telles através de uma directora de casting que também já não trabalha nessa área, a Rita Pinto Leite. Foram pessoas que me receberam bem e eu não esqueci. Por questões de orçamento, fui desenhando o meu mapa sempre a curto e médio prazo. Fui-me instalando aos poucos. Depois mudei-me para casa de uma actriz que não estava cá e me alugou o espaço dela, vivi num quarto na Rua dos Bacalhoeiros. Vivi em quase todos os bairros de Lisboa: Graça, Alfama, Campolide, Alcântara, Santa Catarina. Hoje vivo em Belém, estou muito mais moderada e isso também me incomoda um bocadinho. Tenho medos que não tinha. Estou menos valente. Tenho outras coragens que na altura não tinha, estou mais segura de outras coisas de que naquela época não estava.

Depois de ter sido protagonista da série de televisão Diário de Maria, actuou em Todo o Tempo do Mundo, na telenovela Jardins Proibidos e foi Marta, a protagonista da Filha do Mar. Aceitou um convite de José Eduardo Moniz para a TVI.

Deu-me segurança. Nunca tive retaguarda, sempre me senti um bocadinho sozinha na profissão. Agora menos, fui conquistando o meu lugar. Sou incapaz de não ter um sentimento de gratidão extrema em relação a pessoas que realmente acreditaram em mim. Na minha vida aconteceram várias coisas ao contrário. Durante uma fase, os papéis por que eu lutei muito não se concretizaram. E começaram a aparecer-me outros que eu não queria. Achei que o que tinha de fazer era honrar as responsabilidades que as pessoas me estavam a dar. É a única forma. As coisas não aparecem no caminho por acaso, acredito nisto, não podemos desperdiçar. Apesar de tudo, disse que não a muitos projectos. Acabei os Jardins Proibidos, convidaram-me para fazer os Olhos de Água. Recusei, disse que ia voltar para Nova Iorque mais quatro meses e depois logo via. Sempre fui gerindo bem o aparecer e desaparecer, o entrar e o sair, e fazendo contas à vida.

Também foi fazendo teatro. Entrou na peça Tanto Amor Desperdiçado, encenada por Emmanuel Demarcy-Mota no Teatro Nacional.

Fui tentando intercalar de maneira a não perder o pé nem numa coisa nem noutra. Fui aproveitando os acasos da vida e eles fizeram-me sobreviver a dores que eu tive no passado. Papéis que eu gostava muito de ter feito e não percebia por que é que, estando à partida quase como garantidos, não me vinham parar. Estamos constantemente a ser avaliados por tudo, é uma profissão muito ingrata por isso. Somos avaliados pela cara, pelo corpo, pela voz, pelo que dizemos, pelo que não dizemos e isto num país que é muito feudal, onde existe uma necessidade muito grande de saber "de onde vens?". Do ponto de vista artístico, no início é complicado não se ter um cartão-de-visita, alguém que nos dê a mão. Apesar de tudo, sempre tive os amigos certos. Foi fundamental para mim ter pilares afectivos que me pudessem orientar. É difícil vivermos completamente conectados com a realidade, a tendência ao desfasamento é grande e às vezes precisamos de um olhar exterior e de alguém que nos direccione. Sempre tentei rentabilizar os tempos mortos, ocupá-los com qualquer coisa que depois pudesse ser rentável.

Vive em Madrid para estar perto do seu marido, o economista Vasco Machado.

Há quatro anos que ando entre cá e lá. O meu contrato com a TVI que dura há anos vai acabar em breve. Será eventualmente o fim de um capítulo. Vou manter a itinerância por questões pessoais.

Em Espanha tem trabalhado?

O mercado para um estrangeiro é muito complicado. A primeira pergunta que nos fazem é se alguma vez vamos conseguir perder o sotaque. À partida, é um mercado fechado. Ao contrário de nós, eles primeiro defendem a prata da casa. Arranjei uma série, agora estou a tentar fazer teatro. Mas se não se concretizar nada lá, é urgente fazer cá. O corpo pede-me.

Um actor que não aparece fica esquecido.

Temos de fazer bem essa gestão. Também acredito que, se um actor está sempre a aparecer, o público fica imune, as pessoas criam uma certa resistência àquele ser, já o viram tanto que se torna invisível. A aparição e a desaparição tem de ser gerida. Acredito piamente nisso. Não é possível representar 365 dias por ano ou estar em vários projectos ao mesmo tempo. Deixo a pele em cada trabalho que faço. Se não tiver essa redoma pessoal onde posso encontrar as minhas compensações, é a loucura. A menos que ligue o piloto automático. É sempre um desgaste.

Acrescido pela voracidade da máquina da televisão e das novelas.

É máquina se nós deixarmos. Resguardei a vida pessoal e sempre parei uns meses entre cada uma das telenovelas que fiz. Enquanto estamos a gravar, há alturas em que eventualmente rebentamos, já tive esgotamentos. O que é fundamental para a pessoa não se deixar engolir é a própria pessoa não se transformar numa máquina. Como nunca me transformei numa máquina, estou longe de conseguir ligar o piloto automático e de me mecanizar do ponto de vista profissional e pessoal. Nunca achei sequer que fizesse parte da máquina. Estive lá dentro, estou lá dentro quando ainda é preciso, mas nunca me considerei um produto. Há alturas em que é fundamental sabermos ser invisíveis. Há malta nova mais empresária do que actores. Estão a salvaguardar eventuais dificuldades futuras do ponto de vista económico. Muita gente faz isso e é uma opção válida. Eu não consigo, de repente, tornar-me numa marca.

A exposição passou a existir fora do ecrã.

Não é só quando uma pessoa está a fazer uma novela. É todo o show off para além disso. São as festas, é controlar e fazer a gestão das aparições públicas. De repente, cai-nos toda a gente em cima, há um sem-número de solicitações a que somos expostos e que temos de corresponder ou não. É preciso sabermos dosear essas coisas porque depois as amizades são condicionadas por essa exposição. As pessoas começam a fechar-se e só se relacionam com pessoas da televisão. De repente, tudo o que usas é um patrocínio e transformas-te numa montra. E às tantas não é possível viver-se na montra. Não acredito que seja possível alguém exercer a profissão de actor se não existir o dentro, se existir apenas o fora. Então passamos a ser uns emplastros, sem espessura e dimensão humana.

isabel.coutinho@publico.pt

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