Os brandos costumes de Pedro Almeida Vieira

Foto
A base de dados que criou é a única em Portugal dedicada a autores e a livros de feição histórica: a "biblio-História" [www.pedro ameidavieira.com] NUNO FERREIRA SANTOS

"Crime & Castigo no país dos brandos costumes" vem desfazer o mito do povo sereno que espera D. Sebastião sentado num jardim à beira-mar plantado.

Fomos sempre um povo violento, tanto como outros. E o Estado não fez melhor figura. José Riço Direitinho

Pedro Almeida Vieira (n. 1969), jornalista e engenheiro biofísico, é autor de dois livros de temática ambiental, "O Estrago da Nação" (2003) e "Portugal: O Vermelho e o Negro" (2006) - este último sobre a problemática dos incêndios no nosso país. Para além disso, é também um dos mais talentosos escritores de ficção da sua geração, autor de quatro romances em que o seu interesse pela História é evidente, "Nove Mil Passos" (2004), "O Profeta do Castigo Divino" (2005), "A Mão Esquerda de Deus" (2009) e "A Corja Maldita" (2010). Recentemente, publicou "Crime & Castigo no país dos brandos Costumes", colectânea de narrativas sobre crimes históricos que mostram que nem sempre fomos um povo sereno nem de brandos costumes nesta "selva à beira-mar plantada". A pretexto deste livro, conversámos com ele, mas também sobre o "romance histórico" e a base de dados que Almeida Vieira criou, a única em Portugal dedicada a autores e a livros de feição histórica.

Portugal é mesmo um país de "brandos costumes"? Pela leitura do seu livro parece que não...

Não é nem nunca foi. Basta ler o "Correio da Manhã". A selecção que fiz para este livro de narrativas, um pouco ao estilo camiliano, engloba todo o género de crimes, alguns horrendos (passionais, banditismo, assassínios em série, etc.), outros em que o horror surge através do próprio Estado que aplicava a Lei de Talião. Tivemos a Inquisição durante três séculos, enforcaram-se pessoas por assaltos a igrejas até 1830, os julgamentos duravam apenas um dia mesmo com vários réus, houve fogueiras, mãos decepadas, cabeça degoladas e espetadas em paus. Enfim, este primeiro volume retrata um país que contraria esse mito do povo sereno e de brandos costumes.

Os "brandos costumes" foram uma criação do Estado Novo - como aventa Rui Cardoso Martins no prefácio - ou essa ideia já existia?

Todos os mitos têm uma génese obscura. E por isso nunca correspondem à verdade. O Estado Novo talvez tenha contribuído para essa ideia, embora, na verdade, foi a pouca serenidade do povo e dos políticos da Primeira República que indirectamente pôs Salazar no poder. No passado, o povo só foi sereno quando houve uma mão de ferro. No tempo do marquês de Pombal, um simples roubo, mesmo não havendo homicídio, poderia dar uma condenação à morte.

Como é que lhe surgiu a ideia para escrever este livro?

Um dos motivos foi querer destruir esse mito. Aliás, já há uns anos, quando escrevi um ensaio sobre floresta e incêndios em Portugal, também verifiquei que o tal mito da nossa vocação florestal carecia de sustentação. Agora, estou a escrever outro ensaio ambiental sobre lixo e, também aí, aquela ideia folclórica do jardim à beira-mar plantado e o adágio "cheira bem, cheira a Lisboa" caem por terra. Os viajantes estrangeiros dos séculos XVIII e XIX ficavam chocados com a imundície. Mas a ideia surgiu também por ter descoberto na Biblioteca Nacional uma miscelânea de manuscritos e de sentenças antigas, que foram uma excelente base de trabalho.

E a ideia de criar a base de dados de autores e de romances do género histórico, a "biblioHistória" [www.pedroalmeidavieira.com]?

Começou por ser uma tentativa de organizar a minha biblioteca pessoal, mas depois, à medida que a ia catalogando, constatei que o romance do género histórico tinha uma presença preponderante na literatura portuguesa. E que não existia a devida divulgação. Uma parte considerável dessas mais de 1200 obras já catalogadas são de qualidade menor, embora haja muitas injustamente esquecidas. A "biblioHistória" confirma que a esmagadora maioria dos grandes escritores portugueses teve incursões frequentes no género histórico. Desde Herculano a Garrett, passando pelo Camilo. E, mais recentemente, temos os casos do Saramago, Agustina, Mário Cláudio, Mário de Carvalho, Miguel Real, Fernando Campos e tantos outros.

Tem feito descobertas que valham a pena em termos de uma edição actual?

Publicar agora romances do século XIX, com excepção dos óbvios clássicos, é complicado. Algumas editoras têm arriscado editar alguns autores menos conhecidos, como Arnaldo Gama, Leite Bastos ou Pinheiro Chagas, que, aliás, vendia no seu tempo mais do que o Camilo. Mas com a actual política livreira, que faz desaparecer os romances das estantes ao fim de poucos meses, penso que o Estado, através do Plano Nacional de Leitura, deveria contribuir para essa promoção. E também os académicos têm de começar a estudar e a divulgar autores menos conhecidos. Encontrei um escritor que é o paradigma do que acabei de dizer, Guilherme Centazzi. Se formos consultar qualquer ensaio recente sobre literatura portuguesa, nem sequer é referido. E, no entanto, foi "só" o pioneiro do romance português do século XIX. E o primeiro autor com obra traduzida no estrangeiro. Começou a publicar em 1838, ou seja, seis anos antes de Herculano ter publicado "Eurico, o Presbítero". E em 1840 publicou, em três tomos, um romance contemporâneo, "O Estudante de Coimbra", que, embora com alguns pequenos desequilíbrios, considero-o uma excelente obra, muito irónica, de forte crítica social, e usando estilos literários inovadores. Ora, esta obra era completamente desconhecida, mesmo nos mais reputados meios académicos.

O que é que o atrai no romance de género histórico?

Quando decidi escrever o meu primeiro romance, em 2004, o "Nove Mil Passos" [Sextante Editora], dizia a brincar que estava cansado e quase deprimido da actualidade. Tinha acabado de escrever um ensaio jornalístico "O Estrago da Nação" [D. Quixote] e, desse modo, julgava que, viajando no tempo, esquecia o presente. Eis que "descubro" então, investigando e escrevendo sobre o século XVIII, que afinal existem muitas afinidades entre o passado e o presente. E que isso explica muita coisa daquilo que hoje somos. Mas o que me atrai sobretudo é poder viajar no tempo, e digo isto quase literalmente, porque me embrenho na época do romance. Mas os meus dois últimos romances não são exclusivamente do género histórico. Sobretudo o último, "Corja Maldita", é mesmo uma subversão deste género, que transgride o tempo, que faz alusões frequentes e irónicas ao presente, por via do narrador ser quem é [o diabo], que usa recursos literários não muito habituais.

Sei que não gosta que se diga que é "autor de romances históricos". Porquê?

Não é uma questão de não gostar [risos] é mesmo abominar. Eu nunca vi um romancista de ficção contemporânea ser apresentado como "autor de romances". Quem usa essa expressão demonstra ignorância ou desrespeito, ou então nunca leu nenhum dos meus romances. Prefiro que me digam que sou um mau romancista do que digam que sou um excelente autor de romances históricos, porque a expressão "autor de romances históricos" surge aqui, quase sempre, com uma carga pejorativa.

Porque é que, em sua opinião, o "romance histórico" tende a ser ignorado pela crítica?

O mais conhecido romance português das últimas três décadas, "O Memorial do Convento", é do género histórico - e Saramago fez mais investigação do que se possa imaginar. Até a Blimunda é inspirada numa mulher que existiu durante o reinado de D. João V, referida em escritos da época por ter olhos de lince e fama de ver doenças internas. Agora, parece-me evidente que uma certa "clique" literária tem profundos preconceitos. Pensam que quando se escreve um romance histórico se tem uma muleta nos livros de História, e que por isso é um género fácil. Ora, é certo que alguns romances históricos usam e abusam das muletas da História, mas, se são maus, são-no por motivos alheios ao género. Há também imensa ficção contemporânea má... Na verdade, os bons romances históricos necessitam de imaginação e criatividade, como na boa ficção sobre factos contemporâneos, mas precisam de mais uma coisa: uma boa investigação. É isso que tento fazer. Não estou a dizer que um romancista do género histórico deve ser tratado de forma mais respeitosa; estou sim a dizer que deve ser tratado em pé de igualdade.

Acha que os críticos não lêem os seus livros?

Sei de críticos que nunca leram um livro meu, apesar de nos últimos oito anos ter publicado quatro romances, um livro de narrativas e dois ensaios, todos em editoras prestigiadas. Têm esse direito; não podem é depois dissertar, de cátedra, na imprensa, sobre jovens romancistas, omitindo-me. E falo disto com conhecimento de causa e sem falsas modéstias: há dois anos comprei a um alfarrabista um exemplar do meu romance "A Mão Esquerda de Deus" [finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa/Correntes d"Escritas], devidamente autografado, que fora enviado a um "mui" qualificado crítico literário. O exemplar estava impecável, nem sequer tinha sinais de ter sido aberto. Mas, na verdade, não me sinto injustiçado particularmente. E esse episódio até me serviu para o narrador do "Corja Maldita" lhe fazer uma irónica e sibilina referência.

A sua formação académica é a engenharia ambiental. Como é que vai articulando esse lado com o jornalismo, a escrita e o interesse pela História?

Pode parecer presunção da minha parte: mas adoro aqueles homens do Renascimento que tinham interesses muito variados. Vou articulando de forma pacífica essas actividades, embora a escrita esteja a ganhar primazia. Mas a minha experiência académica ajudou o jornalismo; a experiência no jornalismo ajudou a escrita de ficção; e o conhecimento da História tem-me ajudado em tudo. Até a tornar-me melhor pessoa... pelo menos para mim mesmo.

Sugerir correcção