Há uma rádio em riscos de desaparecer

A recente tomada de posição pública de dois conselheiros de opinião da RDP veio quebrar a indiferença com que o país e em particular alguns antigos responsáveis radiofónicos têm consentido a forma menorizadora como a tutela trata a rádio pública. Um dos conselheiros, Guilherme Valente, nomeado pelo actual Governo, não assumiu, incompreensivelmente, essa qualidade, identificando-se como editor da Gradiva. Mas o facto de ter vindo à liça, ainda que munido de argumentário de surpreendente banalidade, teve o mérito de suscitar uma resposta pública ao representante eleito dos trabalhadores da RDP.Foi-nos permitido assim ter um vislumbre da forma como uns e outros olham para as reformas que o Governo pretende introduzir na rádio pública e que intervenções minimais ao longo destes meses mostravam ser dominadas por um tremendo vazio de ideias.A divulgação do documento "Novas Opções para o Audiovisual" pelo ministro Nuno Morais Sarmento veio confirmá-lo de uma forma pungente ao resumir as linhas orientadoras nas seguintes consignas:- utilizar a Antena 3 como apoio fundamental para a renovação da RDP e "atractividade [sic!] do seu posicionamento";- proceder a uma "profunda reestruturação orgânica" da Antena 1 com vista a "dinamizar os conteúdos", de que são dados como exemplo "debates de grandes temas da actualidade", "interactividade com os ouvintes", música portuguesa "e respectivos protagonistas" e "programas de autor"; - aproximar a Antena 2 "dos públicos jovens", "abri-la à produção cultural e outras formas de expressão artística e musical", procurar "parcerias com produtores de conteúdos" e "ganhar novos públicos".Estas orientações representam uma mudança de 180 graus em relação ao programa do Governo: a Antena 3, de alienável passa a motor da renovação de todo o grupo; a sobrevivência da Antena 2, que dependia de um novo modelo, vê-se garantida caso aposte na juvenilização dos seus públicos e dos quadros; e o alargamento da Antena 1 a novos públicos exige a sua abertura à música portuguesa e aos seus protagonistas (tantos problemas, meu Deus, neste cinzento canal, e a tutela a querer que ele faça uma das coisas que melhor faz e há mais tempo: passar música portuguesa e levar lá os seus intérpretes!...).A inflexão governamental poderia traduzir uma louvável capacidade da tutela para ser sensível aos argumentos contrários. O documento encarrega-se porém de nos desiludir: tudo assenta no resultado do último estudo de audiências (um estudo, apenas um), que deu uma forte subida do canal para jovens da RDP.Se exceptuarmos aquele alvoroço perante a descoberta de que 56 por cento dos ouvintes da Antena 3 têm menos de 25 anos (é o mínimo, não, para uma antena dirigida a jovens?...) o ministro e a equipa que escolheu não dirigiram um único elogio público à RDP. O que legitima todos os receios sobre a rádio que o poder se prepara para nos impor. Essa rádio será talvez ainda pública. Mas já terá sido amputada de traços culturais marcantes que uma certa tecnocracia tem por supérfluos.Sim, porque há uma rádio que está em risco de desaparecer em Portugal. É dessa rádio que falo: - da rádio que Rafael Correia nos oferece há mais de vinte anos na Antena 1, no seu Lugar ao Sul, o mais formidável espaço de recolha e divulgação da cultura popular em Portugal. Alguma vez ouviu, ministro Morais Sarmento? Alguma vez aqueles cujos conselhos privilegia ouviram? - da rádio carregada de histórias e sons que nos chegam de Margens Douro, produzido para a Antena 1 pelos estúdios do Porto da RDP (A propósito: que lugar vão ter antropólogos culturais radiofónicos como estes na mirífica fusão das instalações e, diz-se, dos recursos humanos regionais das duas empresas, em que os seus homens andam a trabalhar, sem ouvirem ninguém?);- da rádio das Questões de Moral que Joel Costa expõe, de um modo tão peculiar, na antena cultural da RDP, aos domingos, de 15 em 15 dias, com repetição às segundas-feiras;- das histórias da música que Em Sintonia Com António Cartaxo nos proporciona semanalmente na Antena 2; - das Grandes Músicas três vezes por semana nas manhãs da Antena 1 (um minuto só, um simples minuto); - e da Posta Restante, com cartas de compositores, no "ar" uma vez por semana no programa Despertar dos Músicos - três rubricas realizadas e apresentadas por quem faz mais, seguramente, pela divulgação da música dita clássica do que patéticas ideias salvadoras que por aí correm de arautos radiofónicos para quem o "coup de foudre" com a juventude eclodirá na directa proporção em que nos leitores de CD da Antena 2 passem a ser colocadas versões "light" das grandes peças do património musical;- da rádio das transmissões do São Carlos, das gravações do Eurorádio e da temporada do MET, onde ouvimos em directo os melhores maestros e os melhores cantores do mundo. (Sabe senhor ministro que os especialistas que aceitam comentá-las no estúdio, onde chegam a ficar por vezes meia dúzia de horas, recebem 75 euros? Sabe que cronistas como Lídia Jorge ou a malograda Helena Vaz da Silva, recebiam, como os seus substitutos de hoje, a quantia - sujeita a impostos, naturalmente - de 60 e poucos euros por intervenção semanal no Despertar dos Músicos? Sabe que o orçamento de programação da Antena 2 não ultrapassou o ano passado os 130 mil contos? Não acha ridículo discursos sobre despesismo numa rádio assim?)É necessário que a Antena 2 e a Antena 1 percam a primeira o pó e a segunda certo imobilismo que por ali grassa. Que ganhem novos públicos. Que dialoguem com a sociedade. Muito se poderia também dizer das insuficiências da RDP Internacional. Há questionamentos possíveis à orientação jornalística da RDP África. E à própria existência, dentro do serviço público, da Antena 3.Mas estes e variados outros problemas da RDP pouco têm a ver com a maior parte das ideias-fantasma que o discurso oficial agita. E que, salvo o devido respeito, traduzem muita ignorância do que é, e um grande desinteresse pelo que deve vir a ser, a Rádio pública em Portugal.Director de Informação da RDP entre Dezembro de 1995 e Julho de 1997

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